por João Carlos Salles (UFBA)
A Bento,
nosso melhor exemplo
Em 1968, Bento Prado Júnior foi chamado a escrever sobre a filosofia no Brasil. Logo ao início de seu texto, confessa-se diante de “tarefa particularmente embaraçosa”. Como falar afinal da filosofia no Brasil, se incerto que tal houvesse – ao menos, em sentido próprio e autêntico? A filosofia, por estas terras, não teria ainda registro de nascimento, pois, ao contrário da nossa literatura nacional, não conformaria um sistema, quando enfim “ler um autor significa interpretar a distância que o separa dos demais”. E, assim como a história não poderia prescindir do alfabeto ou do Estado, a filosofia não poderia começar sem tradição escolar ou sem alfabetizados, no sentido ao menos de que, nessa profissão incerta, lemos e escrevemos filosoficamente quando não mais o fazemos sozinhos.
Não há, decerto, que se negar o eventual brilho de alguns indivíduos, a presença outrora de grandes nomes; entretanto, fora de um contexto propício, seu trabalho antes parecia nascer “de um secreto investimento em formas improváveis”. Bento matizava a dificuldade logo em seu título (“O Problema da Filosofia no Brasil”), pois difícil uma descrição mais extensa, quando quase sempre o que se fazia era mera divulgação ou, em certos casos, puro desatino. Assim, deslocava o tema do fato quase inexistente para a dificuldade mesma do projeto, inventando como desafio o que ainda não seria realidade – no caso, uma filosofia nacional. Tal projeto se apresentaria na consciência comum de uma carência, desdobrando-se na “experiência de uma temporalidade invertida”, na qual, como em interminável introdução metodológica, a filosofia da filosofia precederia a própria filosofia.
Pensar sobre a possibilidade de uma filosofia, confrontando nossa pouca tradição com projetos que se nos afigurariam externos, bem poderia levar-nos à nostalgia de uma cultura que, nunca tendo existido entre nós, se veria contudo ameaçada pela barbárie ou, ainda pior, pela civilização. Devemos convir, talvez por princípio e como estratégia de reflexão mais produtiva, que sempre deva ser incerto se há ou não uma filosofia. E mesmo deixando de lado a cautela, é sabido que, apesar de alguma mudança, ainda nos lemos e nos citamos pouco. Além disso, nosso repertório de problemas, quando singular, ainda é parco, de modo que a distância para com nossos pares costuma ir sem interpretação. Por isso, quem sabe, por um traço talvez cultural cujo exame é aqui dispensável, o gênero resenha é pouco fecundo entre nós, exatamente por trazer extremos opostos como suas expressões mais regulares: o encômio e o libelo destruidor, como se possível escrever sobre colegas apenas para bajulá-los ou para destruí-los.
Em todo caso, quase quarenta anos depois e em meio a continuidades, podemos constatar mudanças significativas. Por exemplo, talvez já possamos contornar a temática de uma filosofia nacional, antes ineludível. Ou, melhor ainda, ao enfrentá-la, talvez já o façamos sinalizando filiações e diferenças, ou seja, participando de um debate no qual, ao selecionarmos um interlocutor, logo nos situamos em alguma tradição. O tema de uma filosofia brasileira não perdeu seu sentido; continua um desafio teórico e mesmo é objeto de investigações inovadoras, que bem ultrapassam o registro de efemérides ou o escrutínio de influências exógenas e de singularidades em pensadores obscuros; entretanto, não mais precisa colocar-se como condição prévia para uma filosofia no Brasil, podendo tornar-se, no futuro, o resultado de reflexão sobre um solo não mais inane.
Bento também pode ser chamado a testemunhar a respeito desse deslocamento. Em texto recente, de outubro de 2006, destinado à plenária de abertura do XII Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF (que presidiu por duas gestões), constata um deslocamento que “metamorfoseou radicalmente o estilo da atividade intelectual”. Uma metamorfose que, tendo alcance global, reveste-se ainda de cor local, devendo matizar, ora positiva ora negativamente, a simples constatação da nova realidade filosófica nacional, seu evidente crescimento e sua mais bem distribuída melhoria de qualidade. A pergunta imediata, aí contida ou contrita, parece simples e natural: A que preço? E Bento não agarra da metamorfose apenas seus traços luminosos, compreendendo bem que, na Academia, nada se faz sem implicações políticas, sendo a luta teórica muita vez a continuação da guerra por meios mais sutis. Assim, cabe estar alerta aos novos tempos, cuja força é, todavia, benfazeja e evidente. A reserva de Bento tem então sabor de proposta política, a um só tempo, para academia e para a dieta filosófica, recomendando que, em ambos os casos, evitemos a unilateralidade dos exemplos. De certa forma, cumpre transformar em um valor o efetivo pluralismo da comunidade filosófica nacional ou, na formulação de Bento, que ultrapassa em muito um mero recado a colegas reais ou imaginários, trata-se de praticar uma “recusa radical de todo e qualquer monismo estilístico”.
Temos agora o luxo de afirmar o efetivo trabalho filosófico no Brasil. E isso pode ser descrito de modo objetivo. No Brasil, assim em diversas áreas da filosofia como em diversas regiões do país, estão dadas as condições para uma formação autônoma e completa – o que se traduz especialmente na produção regular de Dissertações e Teses de qualidade. E, por já existir efetivamente, cumpre até evitar predicar o que deva ser, mesmo cabendo cobrar, em qualquer de suas formas, que o seja com qualidade. Considerando então sua existência efetiva e não a invocação de uma expressão que presuntivamente lhe seja conatural, podemos afirmar que uma vagueza e uma multiplicidade importantes fazem parte de nossa virtude: a filosofia no Brasil não tem um estilo próprio, uma univocidade, que, em nosso caso, tendo em conta nossa dimensão e nossa história, seria nefanda e restritiva, e antes funcionaria como um óbice à procura de uma excelência acadêmica.
Agravada por uma arbitrariedade do regime militar, que retirou a filosofia do currículo do ensino médio, a metamorfose da filosofia brasileira dependeu em muito dessa condição pela qual, entre nós, no que podia ter de qualidade, a filosofia se tornou uma coisa universitária. A metamorfose se deu sobretudo nesse campo, associando-se também (em especial, nos últimos 25 anos) a uma profissionalização generalizada da academia brasileira, que passou a cobrar titulação onde antes imperava o notório saber e redefiniu a malha dos profissionais que, nos departamentos universitários, se dedicava à filosofia. Assim, um movimento geral de valorização da pesquisa e de certos tipos de produção (movimento oriundo de outras áreas do saber e pautado por critérios de avaliação muitas vezes estranhos à reflexão filosófica) passou pouco a pouco a imperar, inclusive na filosofia e mesmo nos departamentos mais afastados dos principais centros. Tornando-se coisa universitária, cobrando títulos universitários e produção em veículos mais credenciados, vimos transformarem-se departamentos, às vezes com alguma violência, não sendo certo que as novas qualificações sempre significassem melhor qualidade. Em todo caso, como um movimento geral, podemos notar que, por todo país, departamentos foram renovados preferindo profissionais formados segundo os novos padrões e as cobranças competitivas de uma pós-graduação em franca expansão. Se houve erros (e não foram poucos), esse movimento contribuiu ao menos para superar a subordinação de nossos departamentos à influência histórica, por exemplo, das academias de letras.
A filosofia entre nós é, pois, coisa universitária. Empregados, em sua maioria, do Estado, nosso trabalho se profissionalizou em virtude de uma generalizada mudança em nossa vida universitária. Por conta disso, como coisa universitária, a formação em filosofia se obrigou a compartilhar com as outras áreas certas características, inclusive para sobreviver em ambiente que, outrora, podia conformar uma prebenda, mas que se tornou inóspito a quem não se mostrasse apto a competir por recursos e não adotasse algo do perfil de cientista. Regidos por novas regras para o trabalho acadêmico, vivemos o deslocamento do ócio produtivo para o negócio, por vezes, improdutivo.
Ao lado do ensaio, do tratado, do comentário, passaram a fazer parte do nosso repertório projetos de pesquisa, relatórios, prestações de conta, pareceres, de sorte que, sem nos julgarmos necessariamente cientistas, fomos obrigados, com algumas dificuldades, a estratégias semelhantes para nossa afirmação profissional. Uma prática tornada igual às outras pelas regras da universidade – de modo mais cruel, pelas regras de financiamento da universidade em que se instala e, logo, mais imediatamente, pelas regras das agências de fomento. Assim, a filosofia, tendo-lhe resistido por um tempo, inclusive por uma inutilidade que, em certo sentido, lhe é própria e honrosa, passou a vivenciar um duplo registro (e uma quase cisão) em nossa vida universitária: ser financiada apenas pelo Ministério da Educação ou também obter recursos do Ministério da Ciência e da Tecnologia, à medida que a formação acadêmica (financiada pelo Ministério da Educação com bolsas de estudo e salários) parece tão-só preparatória para a carreira acadêmica, quando enfim começa e nunca termina a luta pelo financiamento de infra-estrutura de pesquisa e por bolsas de produtividade.
Acompanhou e favoreceu especialmente essa metamorfose uma cumplicidade nem sempre feliz com o sistema de avaliação da CAPES, que, todavia, tem méritos inegáveis no estabelecimento de padrões mais rigorosos para o trabalho acadêmico nas mais diversas áreas. No caso da filosofia, o sistema de pós-graduação acompanhado e avaliado pela CAPES expandiu-se vertiginosamente nos últimos 25 anos. Com efeito, quando foi criada a ANPOF, cujos membros são os programas credenciados, tínhamos cerca de 12 programas, proporcionalmente bastante concentrados na região sudeste. Hoje, são 33 programas por todo país, oferecendo 32 cursos de mestrado e 13 de doutorado. Essa expansão acompanhada, embora talvez nem sempre acertada, possibilitou uma autonomia nacional da formação de pesquisadores e, certamente, constituiu referências nacionais comuns para a pesquisa em filosofia.
Com isso, temos hoje, entre outros elementos, uma literatura nacional que, bem ou mal, vai fixando referências – algumas, incontornáveis. É assim que, entre nós, tem se gestado uma tradição de comentários e contribuições relativamente singular, de sorte que, por exemplo, bem podemos reconhecer uma matizada recepção nacional da obra dos empiristas, uma nietzscheana específica, uma quase epopéia marxista, uma extensa e diversa configuração fenomenológica, uma certa tradição analítica, um conjunto expressivo de estudos sobre o ceticismo, uma forte tradição de estudos sobre pensadores do XVII, entre tantos outros. E mesmo áreas anteriormente desassistidas contam hoje com referências importantes, como é o caso dos estudos de antiga e de medieval. A julgar, porém, pelo volume de trabalhos apresentados nos Encontros da ANPOF, cumpre registrar, como um foco privilegiado da formação de pesquisadores no Brasil, o expressivo número de trabalhos sobre Kant e o idealismo alemão.
Podemos, pois, com algum otimismo e muitas expectativas, afirmar um salto de qualidade, como se esta dormitasse por um tempo em acúmulos quantitativos. Essa rede de trabalhos filosóficos associados à expansão da pesquisa de pós-graduação no Brasil, de onde partem decerto nossas referências mais sólidas e influentes, encontra sua expressão mais clara nos Encontros da ANPOF. Há outras associações, com papel valioso, a exemplo da SEAF. Mas, não nos cabendo fazer história de nossos cismas e diásporas, preferimos antes um breve retrato, um instantâneo, um rápido esboço de nosso panorama atual e de nossos desafios. Por isso, a narrativa centrada na pós-graduação e, desse modo, a prioridade concedida ao trabalho da ANPOF.
Assim, no mais recente encontro, tivemos (após seleção feita por grupos de trabalho e programas) a aprovação de 1.118 trabalhos, tendo desses confirmado a presença no encontro cerca de mil participantes. Esses trabalhos puderam ser agrupados tematicamente, sendo parte significativa coordenada segundo a apresentação por Grupos de Trabalho da ANPOF – atualmente, quarenta e três. Sem dúvida, a ANPOF se consolidou como a mais importante sociedade científica da área de filosofia, tanto por seus Encontros, quanto por sua relação privilegiada de diálogo com as agências e com a comunidade, sendo hoje usuários de sua lista mais de seis mil pessoas, que, de algum modo, estão vinculadas ao trabalho da filosofia no Brasil.
A força da ANPOF, sua grande representatividade, não pode camuflar o fato de ela estar ligada sobretudo ao fortalecimento da pós-graduação, cujo melhor sinal é, sem dúvida, a produção regular de trabalhos acadêmicos com excelência – principalmente, Dissertações e Teses. Por outro lado, a ANPOF voltou as costas por muito tempo à temática do ensino, que muitas vezes foi encampada por profissionais um tanto afastados do específico do trabalho filosófico. O resultado preocupante fora o de se passar por reflexão filosófica o que, muita vez, é banalização do saber. Por isso mesmo, quando primeiro se apresentou a temática da volta da filosofia ao ensino médio, profissionais sérios, com fundadas razões, expressaram o temor de um dano resultante de conhecimentos ditos filosóficos serem veiculados para adolescentes por professores incompetentes, mal formados e, logo, aptos apenas a mal formar as novas gerações.
A preocupação era decerto legítima. Entretanto, já não dava conta do fato de que a própria rede de pós-graduação, mesmo quando afastada das preocupações com o ensino, não deixou de renovar os quadros de praticamente todos os centros do país, ao tempo que ainda nos ofereceu critérios públicos para separar o joio do trigo. Esperamos que hoje seja bastante mais fácil, mesmo sem sucesso garantido, denunciar os mercadores do templo ou quem apenas finge falar javanês.
Em meio a novas condições para o trabalho em filosofia, podemos listar alguns desafios. Em primeiro lugar, tendo alcançado grande êxito em firmar uma comunidade nacional de pesquisadores, o sistema de pós-graduação, premido pelas mesmas forças que o impulsionaram até aqui, precisará encontrar respostas próprias para um novo desafio, o da internacionalização, de sorte que ela expresse excelência e não um exercício subserviente que venha a desnaturar nosso trabalho.
Nesse sentido, o documento de área da filosofia, que se encontra na página da CAPES e serve à avaliação dos programas, precisa muito ser aprimorado. Além disso, ao aprimorar-se, deve manter as regras de avaliação como dependentes de um sistema contínuo, de modo que a excelência valha para todos os cursos, não servindo, como expressão de um retrocesso, para separar os cursos e as regiões. Caso o faça, estará retirando seus próprios méritos e voltando a cindir uma comunidade que, afinal, ainda mal se constituiu. Nesse caso, então, cumpre avaliar nossa produção filosófica por normas semelhantes e sobretudo qualitativas, de sorte que, ao fim e ao cabo, a excelência nacional coincida com um padrão internacional.
Um segundo desafio se nos apresenta com a implantação da filosofia no ensino médio. Resultado de uma ampla luta da comunidade filosófica, a implantação atende a reclamos legítimos, mas não é uma panacéia. Ela não vem resolver as graves carências de formação dos professores do ensino médio, mesmo que a renovação nacional das Universidades potencialmente nos faculte ações institucionais que favoreçam uma formação urgente e continuada de quantos cuidarão da difícil tarefa de aproximar adolescentes das dificuldades e das delícias próprias do saber filosófico.
Nesse sentido, vale lembrar, não sendo uma panacéia, o ensino de filosofia tampouco é um placebo, de sorte que sua introdução, em qualquer caso, seria inofensiva. Como bem o sabemos, em sendo mal feita, ela pode causar grande dano, justificando os mais terríveis temores de quantos se lhe opunham.
Temos então uma difícil tarefa, a mobilizar Secretarias de Educação, Departamentos, Cursos de Graduação e de Pós-graduação. Mais ainda, temos o desafio de continuar a aproximar, segundo medidas elevadas, segundo as medidas do melhor trabalho acadêmico, os profissionais que se dedicam à pesquisa e os que se dedicam ao ensino.
Ao lado da internacionalização, que tudo tem para mobilizar muita energia dos melhores pesquisadores, e da implantação no ensino médio, que tudo tem para consumir enorme esforço de nossas instituições de ensino, podemos antever ainda um novo desafio. Em processo semelhante ao que, na Europa, constitui o processo de Bolonha, tem crescido no Brasil a proposta de uma reorganização radical da arquitetura dos currículos dos cursos de graduação, com a introdução de bacharelados interdisciplinares, a serem realizados em três anos, ao término dos quais o graduado não teria ainda uma profissão específica.
Nesse caso, os defensores da proposta de Universidade Nova não se cansam de antecipar um papel de destaque para a filosofia. Entretanto, em um quadro de formação geral, corremos o risco de ver retroagir o movimento que, no que teve de melhor, caracterizou a transformação da qualidade dos cursos de filosofia por todo país, tanto na graduação quanto na pós-graduação, a saber, uma atenção mais profissional aos textos, um tratamento dos argumentos infenso à generalidade ou à literatice.
Os defensores da Universidade Nova insistem então ser necessário afastar a estreiteza da disciplinaridade, inclusive para combater a escolha precoce de uma profissão.
Com efeito, a proposta tem assim muitos méritos e pode oxigenar muitos cursos. Mais ainda, tem encontrado cada vez maior apoio governamental. É de temer entretanto que, se ela pode prejudicar fundamente algum curso, esse seja o de filosofia, isto é, prejudicará exatamente aquele único curso em que o aprofundamento disciplinar em nada coincide com uma forma qualquer de estreiteza, sendo nossa formação detalhada, minudente, desde o início, talvez o único modo de estar em nosso caminho próprio.
Marcada por uma cisão anterior, que a muito custo procuramos superar, podemos ver cindir-se a comunidade pela diferença entre os desafios colocados à pós-graduação e aqueles outros colocados a todo país, que ora procura reconciliar-se amplamente com o ensino da filosofia. A marcha em direção à internacionalização parece tão irreversível quanto aqueloutra rumo à educação básica. Não podendo talvez ser conduzidas pelas mesmas pessoas, resta procurar que os caminhos conservem algo em comum.
Não bastasse esse risco de cisão histórica, quando a pesquisa só entrevê como um seu correlato no ensino médio alguma prestação de serviços de inserção social, não deixa de ser difícil propor que, entretanto, sejam capazes de entremesclar-se teoricamente. Por outro lado, com propostas como a da Universidade Nova, temos o desafio de evitar que se separem o ensino de graduação e o ensino de pós-graduação, pois corremos o risco de voltar a ter em nossos Departamentos diferenças sistemáticas entre professores, ou mesmo destinações diferentes a Departamentos tornados diversos em suas vocações, doravante cada vez mais estranhas entre si.
Os desafios são muitos. A esperança de vencê-los coincide com a possibilidade de manutenção de uma boa política por quantos estejam (mesmo em papéis distintos e acaso conflitantes) à frente de nossas instituições. Trata-se de uma bandeira a ser garantida, particularmente, pela ANPOF, que soube formular seu compromisso com a constituição de uma comunidade nacional, sem concessões com respeito à qualidade almejada para o trabalho acadêmico e também sem restrições doutrinárias. Concordando com nosso amigo Giacoia, “devemos ser inquivocamente meritocráticos, rigorosos quanto a nossos padrões consensuais de qualidade da produção filosófica, intransigentes em relação a nossas especificidades, mas também pluralistas, sobretudo anti-sectários, tolerantes com o trabalho sério, abertos ao dissenso qualificado”.
Nada mais distante da filosofia no Brasil que a interrogação sobre a natureza de uma possível filosofia brasileira, pois já precisamos lidar com sua realidade, ainda enquanto seus resultados oscilam entre ótimos e incipientes. Não se avança adjetivamente no que exige uma dimensão substantiva. Por resolvida ou insolúvel, a questão mostra-se inócua ou impertinente. Entretanto, tendo o que relatar e não precisando fazer uma história de efemérides e de grandes nomes ou tampouco uma história de mentalidades, aproximamo-nos do tema não mais sob o signo da oposição entre nossa instalação nacional e a universalidade da filosofia, que nos obrigaria a depor, como que de fora, sobre o sentido de nosso trabalho.
É verdade que, anteriormente, talvez não houvesse outro caminho. Ou seja, não havendo suficiente densidade no país, vivendo apenas de surpreendentes raios em céu azul, divididos entre grandes nomes e um contexto risível, restava apenas esboçar algum sentido, elevado ou precário, para a aventura. Hoje, parece possível esboçar uma política, boa ou má, para o efetivo, e não apenas projetos para o virtual. Como arremedo de conclusão de um parto laborioso, podemos retomar o enunciado de uma tese básica muito simples: Passados quase quarenta anos do texto de Bento, indicamos apenas haver muito a dizer.
Concluindo então nosso instantâneo, vale a pena explicitar ainda mais um sentido para nossa homenagem a Bento, ao refletirmos sobre essa filosofia que se faz sobretudo em língua portuguesa. Afinal, Bento é exemplo em muitos sentidos e também especialmente em sua escrita, que sabia valorizar a expressão e a língua.
Dessa forma, à luz de seu labor, fazer filosofia implica um esforço argumentativo, mas também um esforço em favor da palavra. Ademais, em seu trabalho, no qual soube exercitar uma pluralidade de diálogos, mostrou-se em seu elemento enfrentando temas os mais afastados, exemplificando um nosso modo próprio de fazer filosofia, pelo qual podemos enriquecer-nos inclusive pelo comentário. Foi assim que Bento ajudou a inventar uma pauta bastante nossa de estudos de Bergson, de Wittgenstein, de Rousseau, bem como de tantos outros eventualmente tocados por sua palavra. Em todos esses casos, ensinou-nos a superar a divulgação pelo diálogo. Bento é, então, refinamento, exercício filosófico elevado. E agora, quando selecionamos sua palavra, apenas fazemos parte desse jogo pelo qual, em atos e omissões, temos uma tradição filosófica no Brasil.
João Carlos Salles é professor do Departamento de Filosofia da UFBA
Fonte:
IDEA