quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Aos que menosprezam o Centro Acadêmico

É comum a opinião de que, ao entrar na faculdade, você tem que optar por um dos dois caminhos: estudar ou militar. Segundo essa idéia, ou você será um pelego ou será um esquerdista atrapalhado. Todavia, não há nada mais perigoso do que essa distinção entre “vida acadêmica” e “vida política”, essa concorrência entre assembleias e sala de aula.

Em primeiro lugar, essa concorrência é falsa por definição. Na sala de aula somos alunos, no centro acadêmico somos estudantes. Quer dizer, é impossível pressupor uma concorrência entre estudos e militância, pois é impossível que essa concorrência ocorra, dado que ambos são de naturezas (e ocorrem em tempos) diferentes. Quando estamos na sala de aula, na biblioteca, enfim, estamos no tempo da reflexão, estamos aprendendo constantemente um certo tema predefinido. Quando estamos no centro acadêmico, nas assembleias, estamos no tempo da ação (ou da ação refletida, se se quiser), estamos aprendendo fazendo. Ou seja, a “vida política” não apenas não concorre com a “vida acadêmica”, mas lhe é complementar, e, mais ainda, necessariamente complementar, dado que é impossível que a militância tome lugar de algo que lhe é de uma natureza diferente. Esta relação, é importante ressaltar, é biunívoca, ou seja, os estudos também não substituem a militância.

Em segundo lugar há uma questão que decorre da primeira: é a concorrência pelo tempo. Quer dizer, mesmo sendo verdade que, por definição, não há concorrência entre sala de aula e centro acadêmico, na prática temos que escolher um dos dois para “se dedicar mais”, isto é, não há tempo para os dois. Esse argumento, contudo, não é suficiente, pois se trata apenas de cada um organizar seu tempo melhor. Para os que estudam demais, é sempre possível (e bom, saudável) abrir uma ou duas horas por semana para o centro acadêmico (o que é pouquíssima coisa). Para os que “militam demais”, é preciso pedir que tomem vergonha na cara e vão para a sala de aula. Problema resolvido.

O terceiro problema, e provavelmente o pior, costuma ser visto apenas do lado dos que se dizem apenas alunos: “centro acadêmico é negócio do otário”, dizem, “vocês nunca vão fazer revolução, nunca vão mudar nada”. Sem entrar no mérito de se é verdade ou não que o centro acadêmico busca fazer a revolução, essa argumentação implica num problema filosófico: o que é mudar alguma coisa? Será que no mundo em que vivemos (na universidade em que estudamos) já não é suficientemente “revolucionário” questionar a ordem vigente?, tarefa própria do centro acadêmico. O C.A. é, assim, uma ilha no meio do mar (bravo) da academia. Com toda a bagunça de pesquisa, de aula, de organização de eventos, etc, é só pelo centro acadêmico que podemos “vislumbrar” tudo isso (a conseqüência mais natural é ficar impelido pelo desejo de mudança, mas essa também não é a questão aqui). Assim, com todo o respeito possível, parece que seria negócio de otário não participar do centro acadêmico, ficar só na “lengalenga” da sala de aula. (O argumento vale da mesma forma para quem fica só na militância).

Por fim, é importante lembrar que essa distinção entre “vida acadêmica” e “vida política” só pode ser feita conceitualmente (e, por isso, é tão perigosa se usada comumente no dia-a-dia), dado que na universidade a política está na academia, e vice-versa. Para compreender a universidade é necessário compreender a estrutura de poder dentro dela, e, para compreender a estrutura de poder é necessário compreender a universidade. O tempo reflexivo não se separa do tempo da ação. Daí mais um motivo para não deixar a o centro acadêmico: fazê-lo é matar metade (no mínimo) da sua “vida acadêmica”, e justamente aquela mais importante, a que permite aplicar “de fato” o que se aprende na sala de aula para melhorar a sua vida (ou, se se for menos egoísta, para melhorar a sua universidade... se se for menos egoísta ainda, para melhorar o mundo).

Fonte: Artigo publicado aqui pelo Centro Acadêmico Prof. João Cruz da Costa (USP).

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A atualidade do Manifesto de Córdoba

Da Juventude Argentina de Córdoba aos homens livres da América

21 de junho de 1918

Homens de uma República livre, acabamos de romper a última cadeia que, em pleno século XX, nos atava à antiga dominação monárquica e monástica. Resolvemos chamar todas as coisas pelos nomes que têm. Córdoba se redime. A partir de hoje contamos para o país uma vergonha a menos e uma liberdade a mais. As dores que ficam são as liberdades que faltam. Acreditamos que não erramos, as ressonâncias do coração nos advertem: estamos pisando sobre uma revolução, estamos vivendo uma hora americana.

A rebeldia estala agora em Córdoba e é violenta porque aqui os tiranos tinham muita soberba e era necessário apagar para sempre a lembrança dos contra-revolucionários de maio. As universidades foram até aqui o refúgio secular dos medíocres, a renda dos ignorantes, a hospitalização segura dos inválidos e - o que é ainda pior - o lugar onde todas as formas de tiranizar e de insensibilizar acharam a cátedra que as ditasse. As universidades chegaram a ser assim fiel reflexo destas sociedades decadentes que se empenham em oferecer este triste espetáculo de uma imobilidade senil. Por isso é que a ciência frente a essas casas mudas e fechadas, passa silenciosa ou entra mutilada e grotesca no serviço burocrático. Quando em momento fugaz abre suas portas aos altos espíritos é para arrepender-se logo e fazer-lhes impossível a vida em seu recinto. Por isso é que, dentro de semelhante regime, as forças naturais levam a mediocrizar o ensino, e o alargamento vital de organismos universitários não é o fruto do desenvolvimento orgânico, mas o alento da periodicidade revolucionária.

Nosso regime universitário - mesmo o mais recente - é anacrônico. Está fundado sobre uma espécie de direito divino; o direito divino do professorado universitário. Acredita em si mesmo. Nele nasce e nele morre. Mantêm uma distância olímpica. A federação universitária de Córdoba se levanta para lutar contra esse regime e entende que nele se vai a vida. Reivindica um governo estritamente democrático e sustenta que a comunidade universitária, a soberania, o direito de dar-se governo próprio radica principalmente nos estudantes. O conceito de autoridade que corresponde e acompanha um diretor ou um professor em um lar de estudantes universitários não pode apoiar-se na força de disciplinas estranhas à substância mesma dos estudos. A autoridade, em um lar de estudantes, não se exercita mandando, mas sugerindo e amando: ensinando.

Se não existe uma vinculação espiritual entre o que ensina e o que aprende, todo ensino é hostil e por conseguinte infecundo. Toda a educação é uma longa obra de amor aos que aprendem. Fundar a garantia de uma paz fecunda no artigo combinatório de um regulamento ou de um estatuto é, em todo caso, amparar um regime de quartel, mas não um trabalho de ciência. Manter a atual relação de governantes e governados é agitar o fermento de futuros transtornos. As almas dos jovens devem ser movidas por forças espirituais. Os meios já gastos da autoridade que emana da força não se conformam com o que reivindica o sentimento e o conceito moderno das universidades. O estalo do chicote só pode atestar o silêncio dos inconscientes e dos covardes. A única atitude silenciosa, que cabe em um instituto de ciência é a do que escuta uma verdade ou a do que experimenta para acreditar ou comprová-la.

Por isso queremos arrancar na raiz do organismo universitário o arcaico e bárbaro conceito de autoridade que nestas casas de estudo é um baluarte de absurda tirania e só serve para proteger criminalmente a falsa dignidade e a falsa competência. Agora advertimos que a recente reforma, sinceramente liberal, trazida à Universidade de Córdoba pelo Doutor José Nicolás Matienzo não inaugurou uma democracia universitária; sancionou o predomínio de uma casta de professores. Os interesses criados em torno dos medíocres encontraram nela um inesperado apoio. Nos acusam agora de insurretos em nome de uma ordem que não discutimos, mas que nada tem que fazer conosco. Se é assim, se em nome da ordem querem continuar nos enganando e embrutecendo, proclamamos bem alto o direito da insurreição. Então a única porta que fica aberta para nós à esperança é o destino heróico da juventude. O sacrifício é nosso melhor estímulo; a redenção espiritual das juventudes americanas nossa única recompensa, pois sabemos que nossas verdades são de todo o continente. Que em nosso país uma lei - se diz -, a lei de Avellaneda, se opõe à nossas aspirações? Pois reformem a lei, que nossa saúde moral está exigindo.

A juventude vive sempre em transe de heroísmo. É desinteressada, é pura. Não teve tempo ainda de contaminar-se. Não se equivoca nunca na eleição de seus próprios mestres. Ante aos jovens não se faz mérito adulando ou comprando. É preciso deixar que eles mesmos elejam seus professores e diretores, seguros de que o acerto vai coroar suas determinações. Adiante, só poderão se professores na república universitária os verdadeiros construtores de almas, os criadores de verdade, de beleza e de bem.

Os acontecimentos recentes da Universidade de Córdoba, com o motivo da eleição para reitor, esclarecem singularmente nossa razão de como apreciar o conflito universitário. A federação universitária de Córdoba acredita que deve fazer conhecer ao país e à América as circunstâncias de ordem moral e jurídica que invalidam o ato eleitoral verificado no dia 15 de junho. Ao confessar os ideais e princípios que movem a juventude nesta hora única de sua vida, quer referir os aspectos locais do conflito e levantar bem alta a chama que está queimando o velho reduto da opressão clerical. Na Universidade Nacional de Córdoba e nesta cidade não foram presenciadas desordens; se contemplou e se contempla o nascimento de uma verdadeira revolução que há de agrupar bem rápido sob sua bandeira a todos os homens livres do continente. Relataremos os acontecimentos para que se veja quanta razão tínhamos e quanta vergonha nos tirou a covardia e falsidade dos reacionários. Os atos de violência, dos quais nos responsabilizamos integralmente, se cumpriam como no exercício de puras idéias. Derrubamos o que representava o anacrônico e o fizemos para poder levantar o coração sobre essas ruínas. Aquilo representa também a medida de nossa indignação na presença da miséria moral, da simulação e do engano arteiro que pretendia filtrar-se com as aparências da legalidade. O sentido moral estava obscuro nas classes dirigentes por uma hipocrisia tradicional e por uma pavorosa indigência de ideais.

O espetáculo que oferecia a assembléia universitária era repugnante. Grupos de amorais desejosos de captar-se a boa vontade do futuro reitor exploravam os contornos no primeiro escrutínio, para inclinar-se depois ao bando que parecia assegurar o triunfo, sem lembrar a adesão publicamente empenhada, o compromisso de honra contraído pelos interesses da universidade. Outros - os demais - em nome do sentimento religioso e sob a advogação pelos interesses da Companhia de Jesus, exortavam à traição e ao pronunciamento subalterno (Curiosa religião que ensina a menosprezar e rebaixar a personalidade! Religião para vencidos ou para escravos!). Tinha-se obtido uma reforma liberal mediante o sacrifício heróico de uma juventude. Acreditava-se ter conquistado uma garantia e da garantia se apoderavam os únicos inimigos da reforma. Na sombra, os jesuítas tinham preparado o triunfo de uma profunda imoralidade. Consentir com isso seria outra traição. À enganação respondemos com a revolução. A maioria representava a soma da repressão, da ignorância e do vício. Então demos a única lição que cabia e espantamos para sempre a ameaça do domínio clerical.

A sanção moral é nossa. O direito também. Aqueles puderam obter a sanção jurídica, embutir-se na lei. Não permitimos. Antes de que a iniqüidade desse um ato jurídico, irrevogável e completo, nos apoderamos do salão de atos e expulsamos os canalhada, só então amedontrada. Que isso é certo, o patentiza o fato de, logo depois, a federação universitária ter feito uma sessão no próprio salão de atos e de mil estudantes terem assinado sobre o mesmo púlpito do reitor, a declaração de greve por tempo indeterminado.

De fato, os estatutos reformados dispõe que a eleição para reitor terminará em uma só sessão, proclamando-se imediatamente o resultado, com a leitura de cada uma das cédulas e a aprovação da respectiva ata. Afirmamos, sem temor de ser corrigidos, que as cédulas não foram lidas, que a ata não foi aprovada, que o reitor não foi proclamado, e que, por conseguinte, para a lei, ainda não existe reitor nesta universidade.

A juventude universitária de Córdoba afirma que jamais fez questão de nomes nem de empregos. Se levantou contra um regime administrativo, contra um método docente, contra um conceito de autoridade. As funções públicas se exercitavam em benefício de determinadas camarilhas. Não se reformavam nem planos nem regulamentos por medo de que alguém nas mudanças pudesse perder o emprego. O lema "hoje para você, amanhã para mim", corria de boca em boca e assumia a validade de estatuto universitário. Os métodos docentes estavam viciados de um estrito dogmatismo, contribuindo em manter a universidade distante da ciência e das disciplinas modernas. As eleições, encerradas na repetição interminável de velos textos, amparavam o espírito de rotina e de submissão. Os corpos universitários, zelosos guardiões dos dogmas, tratavam de manter a juventude na clausura, acreditando que a conspiração do silêncio pode ser exercitada contra a da ciência. Foi então quando a obscura universidade mediterrânea fechou suas portas a Ferri, Ferrero, Palacios e outros, ante o medo de que fosse perturbada sua plácida ignorância. Fizemos então uma santa revolução e o regime caiu a nossos golpes.

Acreditamos honradamente que nosso esforço tinha criado algo novo, que pelo menos a elevação de nossos ideais merecia algum respeito. Assombrados, contemplamos então como se coligavam para arrebatar nossa conquista os mais crus reacionários.

Não podemos deixar nossa sorte à tirania de uma seita religiosa, nem ao jogo de interesses egoístas. Eles querem nos sacrificar. O que se entitula reitor da Universidade de San Carlos disse sua primeira palavra: "Prefiro antes de renunciar que fique o varal de cadáveres dos estudantes". Palavras cheias de piedade e de amor, de respeito reverencioso à disciplina; palavras dignas do chefe de uma casa de altos estudos. Não invoca ideais nem propósitos de ação cultural. Se sente custodiado pela força e se levanta soberbo e ameaçador. Harmoniosa lição que acaba de dar à juventude o primeiro cidadão de uma democracia universitária! Recolhemos a lição, companheiros de toda a América; talvez tenha o sentido de um presságio glorioso, a virtude de um chamado à luta suprema pela liberdade; ela nos mostra o verdadeiro caráter da autoridade universitária, tirânica e obssecada, que vê em cada petição um prejuízo e em cada pensamento uma semente da rebelião.

A juventude já não pede. Exige que se reconheça o direito de exteriorizar esse pensamento próprio nos corpos universitários por meio de seus representantes. Está cansada de suportar os tiranos. Se foi capaz de realizar uma revolução nas consciências, não pode desconhecer-se a capacidade de intervir no governo de sua própria casa.

A juventude universitária de Córdoba, por meio de sua federação, saúda os companheiros da América toda e os incita a colaborar na obra de liberdade que se inicia.

Enrique F. Barros, Horacio Valdés, Ismael C. Bordabehere, presidentes - Gumersindo Sayago - Alfredo Castellanos - Luis M. Méndez - Jorge L. Bazante - Ceferino Garzón Maceda - Julio Molina - Carlos Suárez Pinto - Emilio R. Biagosh - Angel J. Nigro - Natalio J. Saibene - Antonio Medina Allende - Ernesto Garzón.