quarta-feira, 25 de novembro de 2009

As universidades comunitárias e o debate que se impõe

Susana M. Speroni*


As transformações do sistema brasileiro de Educação Superior na última década revelaram um avanço importante das instituições acadêmicas de caráter privado, com características empresariais. A observação desse quadro de crescimento no Rio Grande do Sul deve ser apresentada de forma desagregada em face da diversificação institucional e a importância assumida pelo grupo de instituições privadas sem fins lucrativos, dividas em filantrópicas, confessionais e comunitárias.


Os dados do Censo da Educação Superior levantados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anisio Teixeira, INEP, correspondentes ao ano de 2005, ilustram bem a configuração do sistema de Educação Superior no Rio Grande do Sul, no sentido de apontar o seu caráter marcadamente privado se considerarmos que, do total de 99 Instituições Ensino Superior (IES) presentes no estado somente 10 são públicas. Da mesma forma o sistema apresentase focalizado principalmente nas instituições de direito privado que constituem um total de 89, sendo que, destas, 48 IES correspondem às particulares com fins lucrativos, e 41, às IES confessionais, filantrópicas e comunitárias que se distinguem das anteriores por não auferir fins lucrativos. Por outro lado, o sistema apresenta características de descentralização e interiorização se considerarmos que do total de IES, 29 se encontram na capital e 70 no interior.


Os dados das matrículas reforçam as características apontadas anteriormente na medida em que do total de 338.913 alunos, 49.647 ou 14,6% encontram-se matriculados nas instituições públicas e 85,4% nas privadas. Dos 289.266 alunos matriculados nas instituições privadas, 262.423 alunos encontram-se alocados no grupo das privadas sem fins lucrativos localizadas tanto na Capital quanto no Interior do estado e 26.843 (9,3%), nas unidades privadas com fins lucrativos.


Do total de alunos matriculados na rede privada, 90,7% estão nas confessionais, filantrópicas ou comunitárias e destes 262.423, aproximadamente 42%, estão nas universidades comunitárias em sentido estrito ou laicas, do interior do estado, correspondendo a um total de 96.779 alunos de graduação no ano de 2005. Ver quadro abaixo.


Da mesma forma, cabe destacar ainda que, ao considerar o número de funções docentes envolvidas encontramos que, do total de 21.085 no Estado, 5.545 correspondem ao setor público e 15.440 ao privado das quais 13.653 estão sendo desempenhadas nas IES confessionais, filantrópicas e comunitárias.


Embora a singularidade do modelo comunitário tenha sido reconhecida na Constituição Federal (art. 213) e pela LDB (art. 20) como categoria exclusiva IES comunitárias no âmbito das instituições privadas, na prática são consideradas como um conjunto pertencente às instituições privadas sem fins lucrativos, conforme mostra o quadro acima.


As IES denominadas comunitárias têm passado nos últimos anos por situações reconhecidas, como ameaças aos princípios que constituem o modelo de instituições universitárias consolidado no país a partir do Rio Grande do Sul.


Elas compõem um modelo singular gerado por mobilização de setores sociais em várias regiões do estado. Tratava-se de resposta à expansão necessária das matrículas do Ensino Superior, a que o sistema federal não dava a devida cobertura ainda nos anos cinqüenta, mesmo que já se contasse com a sucessiva criação de unidades federais em Pelotas, Rio Grande e Santa Maria.


Os municípios que deram origem a IES não-estatais formularam projetos nascidos por mobilização de setores da sociedade civil, gestando, a princípio, unidades isoladas faculdades às quais se seguiram novas unidades, aglutinando-se e integrando-se de modo a fortalecer a idéia de construção futura de universidades.


São conhecidas as diferenças das origens entre as hoje denominadas universidades comunitárias, no entanto, algumas marcas estão presentes na sua constituição institucional: os princípios que formam seu ideário, sua inserção regional, transparência administrativa e compromissos democráticos. Não se constituindo na forma de instituições estatais, definem-se como entidades privadas, mas sem fins lucrativos, proclamando-se como “públicas não-estatais”, na medida em que estão submetidas a controles de sua gestão por órgãos colegiados com representantes das IES e da sociedade regional.


Tal condição tem sido explicitada nas teses do organismo representativo destas IES no RS, o Comung – Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas, que congrega 12 instituições de Ensino Superior, sendo que, dentre elas, duas (Feevale e Univates) são Centros Universitários. As Universidades Comunitárias laicas do interior do Estado do Rio Grande do Sul são: Universidade de Caxias (UCS), de Ijuí (Unijuí), Passo Fundo (UPF), Santa Cruz do Sul (Unisc), Integradas do Alto Uruguai e Missões (URI), da Região da Campanha (Urcamp), de Cruz Alta (Unicruz) bem como a Católica de Pelotas (Ucpel). Finalmente a Pontifícia Universidade Católica (Pucrs) e a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), embora reconhecidamente confessionais e localizadas na Capital do Estado e sua área Metropolitana, também integram o Comung.


Os vínculos com as comunidades de origem foram a emulação necessária para dar conta do crescimento dessas instituições, e suas estratégias de reprodução assentaram-se sobre os compromissos tácitos de expansão, seja no crescimento da planta física, aumento da oferta de vagas, da diversificação de cursos e da dispersão dos campi, seja na capacitação do corpo docente e no fortalecimento dos vínculos comunitários através da extensão. O crescimento foi contínuo até meados desta década a despeito de algumas perturbações de ordem financeira que as atingiram de forma diferenciada.


Além do significado importante de seus números, cabe destacar outra característica que demarcou a presença dessas IES: sua territorialidade, ou seja, seu ancoramento e enraizamento em áreas extensas de território do estado, onde exercem influência marcante e que definem a base da maior parte de recrutamento de seus estudantes. Essa foi durante muito tempo uma lógica determinante a impulsionar o foco de seu crescimento.


O cenário atual de profundas transformações no quadro da Educação Superior brasileira tem trazido para este modelo algumas perturbações cuja origem pode ser identificada com o caráter da expansão do Ensino Superior no país, principalmente depois de 2003/2004 com destaque para proliferação de instituições de caráter empresarial impondo novos padrões de competitividade.


A nova realidade redefine o caráter da competição por matrículas, potencializada por duas características antes não presentes: por um lado, a agressividade das investidas onde o item preço

torna-se um atrativo quase irresistível, difícil de ser acompanhado pelos métodos tradicionais de gestão das IES que são alvo desta competição e, por outro, a transgressão dos limites territoriais.


Com relação a este último ponto, são dois movimentos que atuam de forma isolada ou de modo articulado: um, que as empresas educacionais, em grande parte, compõem-se de grupos nacionais com atuação em áreas do país observadas sob o ponto de vista de seu potencial econômico, significando promessa de êxito dos empreendimentos; outro, o ensino a distância, complementa a desterritorialização, embora reconhecido como recurso potencializador para o acesso de grandes contingentes à educação superior.


Se considerarmos, dentro da categoria das comunitárias, filantrópicas e confessionais, somente o conjunto das sete Universidades Comunitárias do interior do Estado, que foram definidas como comunitárias em sentido estrito por serem laicas, estamos nos referindo a um conjunto de 5.483 professores, 4.701 funcionários, 270 cursos de graduação, 96.779 alunos de graduação, 279 cursos de especialização, 7.621 alunos de especialização, 27 cursos de mestrado, 855 alunos de mestrado, quatro cursos de doutorado, 4.464 bolsas Prouni e 818 bolsas de Iniciação Científica das próprias instituições ou de órgãos oficiais (www.comung.gov.br, setembro 2007).


Entre as sinalizações que o governo atual tem dado ao sistema de Educação Superior, a interiorização dos investimentos tem sido amplamente divulgada, de modo a compensar o desequilíbrio histórico entre o crescimento populacional e o abandono dos investimentos estatais. No Rio Grande do Sul, as iniciativas de constituição de novas unidades estatais já estão surgindo sem falar no papel de consolidação da Uergs com a Unipampa e as unidades de ensino técnico/tecnológico.


No entanto o paradoxo que se apresenta com essa estratégia é o de aprofundar as dificuldades das instituições comunitárias que precisam, de um lado, competir com o subsistema empresarial e, de outro, partilhar a demanda reprimida de matrículas com o setor público. A garantia de sua reprodução institucional nesse cenário precisa passar por dois campos de ação: um interno, da busca de alternativas de gestão, sem perder as suas características distintivas, principalmente no que se refere à sua inserção regional, seus mecanismos democráticos e seus vínculos comunitários; outro, do ambiente externo, através de medidas de governo que definam uma atenção especial para este modelo institucional.


* Professora do Departamento de Educação da UNISC.

domingo, 15 de novembro de 2009

XXVI Encontro Nacional dos Estudantes de Filosofia

O Encontro Nacional dos Estudantes de Filosofia – ENEFIL é um evento de caráter acadêmico-cultural, promovido por estudantes do curso de Filosofia do país e que ocorre anualmente em diferentes Estados. Pretende-se com este, manter um espaço permanente de discussão sobre questões pertinentes ao estudo, pesquisa e ensino de filosofia, principalmente no Brasil. Diante disso, o colegiado discente e docente de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará e da Universidade Federal do Ceará vem por meio do ENEFIL convidar a comunidade filosófica a participar de um dos eventos mais tradicionais da ABEF – Associação Brasileira dos Estudantes de Filosofia.

O XXVI ENEFIL ocorrerá em Fortaleza do dia 17 a 24 de Janeiro de 2010. O evento tem como foco principal a seguinte temática: Filosofia e Educação: um debate sobre a realidade Latino Americana, e oferecerá conferências, mesas redondas, painéis, ato-debate, seções de comunicação e oficinas. Com o intuito de intensificar a discussão sobre essa temática, examinando-a criticamente.

Mais informações: http://enefil2010.blogspot.com

O desafio filosófico de Espinosa

FOLHA DE S. PAULO Domingo, 9 de janeiro de 1994 (seção Livros, caderno 6, p. 11)
Marilena Chauí

Antonio Negri rebate leituras hegemônicas e lança uma interpretação radical da obra do filósofo

Espinosa tem desafiado filósofos e historiadores da filosofia ao longo dos últimos 300 anos. Duas têm sido as interpretações que formaram a tradição exegética do espinosismo: aquela, inaugurada no século 17 por Pierre Boyle, que identifica panteísmo e ateísmo e considera o espinosismo o fruto maldito do casamento entre o neoplatonismo e o cartesianismo; e aquela, iniciada com os românticos alemães, que identifica panteísmo e misticismo, fazendo de Espinosa o “homem ébrio de Deus.” Entre estas duas imagens contrastantes intercalam-se outras, de menor fôlego: a do liberal ideólogo da burguesia holandesa, a do filósofo barroco, a do marrano dilacerado entre a tradição judaica e a descoberta da razão laica moderna.

Antonio Negri não se ocupa com as imagens menores e demole as duas outras, hegemônicas na história da filosofia. De maneira vigorosa, erudita e combativa, Negri articula a filosofia espinosana à história (econômica, social, política e intelectual) do século 17 para mostrar, antes de tudo, que a obra de Espinosa não é o reflexo passivo de sua época, mas uma compreensão de seu tempo que lhe permite pensar o futuro e abrir-se para ele.

Mostra também que há, como quer a tradição interpretativa, uma ruptura no pensamento espinosano, porém, contrariamente à tradição, Negri não a localiza onde se costuma vê-la, isto é, no momento em que, ainda neoplatônico renascentista, Espinosa teria lido a obra de Descartes e a de Hobbes, tornando-se, enfim, moderno.

Não, diz Negri. A ruptura é interna ao pensamento de Espinosa, cujas tensões e aporias o conduzem para fora do legado da Renascença, para além do cartesianismo e do hobbesianismo. Mostra, ainda, que o projeto filosófico, científico e tecnológico hegemônico no século 17 é uma operação ideológica para dissimular a crise constitutiva do capitalismo, operação apoiada nas idéias de transcendência (de Deus e do Estado), de hierarquia ontológica dos seres (e, portanto, das classes sociais), de finalismo ético-metafísico (as virtudes são modelos prévios que comandam de fora a ação humana, segundo a vontade de Deus e do monarca absoluto que representa a divindade na terra) e de dominação técnica da Natureza. Diante dessa operação, a filosofia de Espinosa é uma anomalia selvagem porque, além de afastar esse conjunto de idéias, criticando-as, substitui-as por outras que constituem uma verdadeira revolução filosófica.

A revolução espinosana

As inúmeras interpretações do espinosismo assentam-se em duas vigas mestras. A primeira é fincada na compreensão da filosofia espinosana como teologia metafísica da produção da realidade a partir do desdobramento da essência da substância infinita e una-única da qual os seres finitos são efeitos, consequencias e propriedades. É a viga mestra do panteísmo e da imanência de Deus ao mundo – Deus sive Natura, Deus ou Natureza. A segunda viga mestra é fincada na afirmação de que as obras políticas de Espinosa (o Tratado Teológico-Político e o Tratado Político) são textos de circunstância, derivados do sistema metafísico e sem maiores consequencias para este último.

Opondo-se a isto, Negri afirma que:

1) A metafísica panteísta, que vai de Deus (a Substância una-única infinitamente infinita) aos modos finitos (os seres singulares existentes na Natureza, entre os quais os seres humanos) constitui a primeira filosofia de Espinosa, abandonada pelo filósofo por uma ontologia materialista na qual o ser infinitamente infinito é pensado e compreendido não a partir de sua essência (como no panteísmo renascentista e no cartesianismo), mas de sua potência infinita para existir e agir e, mais do que isto, tal potência resulta da potência dos seres finitos, isto é, é produzida pela ação dos seres finitos e é conhecida pela ação (experiência e práxis) dos seres humanos. Em outras palavras, a totalidade substância-modos (1) ou Deus-Natureza, ou infinito-finito é constituída pela potência de existir e de agir dos seres finitos singulares imanentes à potência infinita do ser absoluto: Natureza e/ou Deus é a ação das coisas singulares finitas e práxis humana;

2) A mudança na filosofia de Espinosa ocorre quando o filósofo redige o Tratado Teológico-Político, descobrindo que a história e o social fundam e constituem a ontologia e não o contrário. Assim, a obra política é o núcleo da filosofia espinosana.

A revolução filosófica espinosana é a inauguração do materialismo moderno: o histórico-social, isto é, a práxis, funda a ontologia; a ação humana funda o ser e o absoluto. Revolução filosófica porque Espinosa altera radicalmente a perspectiva teológico-metafísica da tradição e do século 17, baseada na essência infinita e perfeita de Deus e na criação do mundo ou das essências finitas pelo intelecto e vontade da divindade.

Abandonando a perspectiva essencialista (que Negri identifica com a teoria espinosana dos atributos divinos) pela idéia de potência infinita (o ser ou substância como espontaneidade absoluta de auto-produção) e partindo do finito (a potência de existir e agir dos modos singulares ou seres singulares concretos existentes), para o infinito, Espinosa lança por terra a ontologia platônica (ou o neoplatonismo renascentista) e a teologia cristã (transcendência divina, personalidade divina, criação do mundo pela vontade e intelecto divinos, imortalidade da alma, livre-arbítrio e pecado, salvação messiânica). Ao fazê-lo, Espinosa retira o solo onde se movem o cartesianismo, o mecanicismo, a Reforma e a Contra-Reforma.

Escreve Negri:

“A anomalia filosófica de Spinoza consiste nisto: na irredutibilidade de seu pensamento ao desenvolvimento do racionalismo e do empirismo modernos, que são filosofias subordinadas à crise, filosofias sempre dualistas e irresolutas, voltadas para a transcendência como território exclusivo de réplica ideal e de dominação prática do mundo – e, portanto, filosofias funcionais par a definição da burguesia, para seu definitivo auto-reconhecimento como classe da crise e da mediação... A anomalia do pensamento de Spinosa em relação à sua época se torna então anomalia selvagem. Selvagem porque articulada com a densidade e a multiplicidade de afirmações que surgem da extensa afabilidade do infinito. Há em Spinoza o prazer de ser infinito. Que é prazer do mundo. Quando o paradoxo do mundo, a tensão nele aberta entre infinidade positiva e infinidade de determinações, se desenvolve em atividade e se reconhece no processo constitutivo, então o prazer do mundo começa a se tornar central e a anomalia se faz selvagem. Selvagem porque vinculada à multiplicidade inexaurível do ser, às suas florescências, tão vastas quanto cheias de movimento. O ser de Spinoza é selvagem e sombreado e múltiplo em suas expressões” (p. 271 e 282).

A revolução-anomalia

O pensamento filosófico moderno, diz Negri, procura conceitos que sejam a réplica ideal (imaginária) das relações de produção capitalista. A filosofia de Espinosa, ao contrário, afirma as forças produtivas e critica a versão metafísica das relações de produção.

No início do livro de Negri há dois Espinosa: um, que representa a culminância do pensamento humanista da Renascença, de cunho neoplatônico (o emanatismo de Leão Hebreu e o panteísmo de Giordano Bruno), cultivado pelo círculo de amigos cristãos de Espinosa e que Negri designa como pensamento utópico – busca da salvação pelo ascetismo moral e pela fusão mística com a divindade. O outro, que realiza a revolução filosófica, inaugura o materialismo moderno – a concepção do homem como apetite e desejo no interior da Natureza, como potência de existir e agir que sofre as pressões de causas externas, mas também se constitui como causa interna de apropriação livre da Natureza e de instauração da sociabilidade e da política. Acompanhando as tensões, contradições e aporias do percurso da obra espinosana, Negri nos apresenta, no ponto de chegada, um só Espinosa, aquele cujo pensamento vimos efetuar-se como trabalho da obra.

Negri fala em duas “fundações” da obra. Na “primeira fundação” estão presentes o misticismo religioso, a essencialidade produtiva divina da teologia da Contra-Reforma, a ontologia emanatista neoplatônica e o dualismo metafísico cartesiano de separação entre corpo e alma. A “segunda fundação”, posterior à redação do Tratado Teológico Político, enfrenta a aporia deixada pela primeira, isto é, o essencialismo posto pelos atributos de Deus como causadores da realidade e cujo estatuto é um problema não só para Espinosa, mas também para seus intérpretes (que oscilam entre uma concepção subjetivista dos atributos e uma concepção objetivista). O TTP, criticando o par superstição-medo, que dirige a práxis histórica, e substituindo-o pelo par liberdade–segurança, introduz a potência humana e, por meio dela, permite a Espinosa realizar a “segunda fundação” da obra.

Desaparece, agora, a emanação do mundo a partir da essência divina e seus atributos em proveito da potência infinita, presente imediatamente na constituição ontológica do mundo das coisas em sua materialidade. A relação se estabelece diretamente entre a potência infinita do ser e a potência livre dos seres finitos. O homem, como indivíduo singular, se constitui como conatus (potência de auto-preservação), apetite corpóreo e desejo consciente (potência de apropriação da Natureza), ou, em outras palavras, como espontaneidade de uma força produtiva e como subjetividade. A espontaneidade da força produtiva apropriadora da Natureza constitui um novo indivíduo, indivíduo coletivo e uma subjetividade coletiva inédita: a multitudo, a massa como força social e política que constitui o político sem passar pela ficção burguesa do contrato social.

Ética e política são ontologias porque são históricas: concernem ao movimento de constituição do homem como potência de liberação que age no interior de limites (a potência da Natureza e a potência dos outros homens limitam a nossa) e de constituição da multitudo como sociabilidade determinada que funda a política como liberação no interior de limites determinados (a potência da sociedade). Os limites da ação são determinados (natureza e história), mas são fixos, e a liberdade humana é a tendência para afastar e redefinir tais limites. A liberdade é ação.

A ontologia de Espinosa não é panteísmo emanatista; a ética espinosana não é utopia da salvação por imersão no absoluto; a política espinosana não é contratualista nem transforma o direito em obrigação e obediência; e sobretudo, o pensamento espinosano não é dialético: não precisa das piruetas do idealismo alemão, seja sob as formas das antinomias da dialética transcendental kantiana, seja sob a forma do “calvário do negativo” das mediações hegelianas. Filosofia da afirmação e não da mediação.

Tudo quanto é hegemônico no pensamento do século 17 vê-se demolido pelo materialismo prático (ético, político, ontológico) de Espinosa. À idolatria do mercado como organização sócio-política das relações de produção, Espinosa contrapõe a pluralidade infinita das forças produtivas singulares indomináveis porque são forças de apropriação ou desejo; à burguesia holandesa, submissa à crise e às imagens da transcendência e da hierarquia, Espinosa contrapõe a potência infinita do ser que se irradia em expressões singulares necessárias e livres e cujo poder se realiza plenamente na democracia; à teoria hobbesiana do contrato e da autoridade política formada pela passagem do fato ao direito como obrigação, Espinosa contrapõe a constituição do político pela multitudo cujo poder é direito e cujo direito é poder, ambos como desejo de liberdade (governar e não ser governado); ao dualismo cartesiano do corpo e da alma, Espinosa contrapõe o movimento contínuo de passagem da singularidade corporal à subjetividade psíquica, ambas aspectos da mesma realidade individual complexa às experimentações científico-tecnológicas de domínio da Natureza, Espinosa contrapõe o movimento ético-político de apropriação da Natureza para realização da segurança, da paz e da liberdade. Espinosa escava e demole os pilares do pensamento moderno: transcendência, finalismo, hierarquia e dominação, em suma, as mediações.

Mesmo que o leitor de Espinosa possa discordar de vários aspectos da interpretação oferecida por Negri, não discordará – se for leitor atento de Espinosa – do ponto central da anomalia selvagem: a demolição espinosana do imaginário teológico-metafísico que servia de alicerce para a ética e a política, desde a antiguidade até nossos dias, e aquilo que o faz, do fundo do passado, nosso contemporâneo. Um filósofo que jamais abandonou o combate a todas as formas de alienação e servidão visíveis e invisíveis pede leitores combativos e corajosos como Negri. Espinosa, diz Negri, não precisa de utopias e as combate duramente porque funda ontologicamente a liberdade e desvenda as formas práticas de sua realização. Filósofo das forças produtivas, destrói as ideologias que enfatizam imaginariamente as relações de produção.


NOTA

1 – Para o leitor não-familiarizado com o pensamento de Espinosa: o ser infinitamente infinito (substância, Deus, Natureza Naturante) existe em si e por si e é causa de si ou potência infinita de existência e ação, manifestando-se espontaneamente em seres singulares finitos são seus modos. Os seres humanos são modos finitos do infinito e são imanentes a ele por suas potências de existir e agir. Na tradição interpretativa, afirma-se a derivação dos modos finitos a partir da essência finita do ser, através de seus atributos essenciais infinitos. Negri propõe abandonar essa tradição interpretativa fazendo que a potência dos modos finitos concretos (apetite e desejo) funde a potência infinitamente infinita do ser ou da Natureza.

sábado, 14 de novembro de 2009

Juventude e cultura: identidade, reconhecimento e emancipação.

Paulo Denisar Fraga*


Para se compreender a relevância da relação entre a juventude e a cultura, não basta tomar esse tema de forma externa, ou dizer, simplesmente, que a juventude é uma das mais contundentes portadoras das variadas expressões da cultura. Para além disso, o importante é tentar apreender, ainda que de forma geral, o binômio juventude–cultura na sua imanência interna, ou seja, na própria compreensão do modo de ser da juventude na sociedade moderno-contemporânea (ou tardo-capitalista).

Isso se torna importante, sobretudo, porque o problema de grande parte dos teóricos que trataram sobre a juventude consiste ou em vê-la de forma singular (como se houvesse uma única juventude), ou em não conseguir explicar como se dá a constituição-diferenciamento de suas várias identidades sem se perder da unidade.

Num estudo intitulado 1968... ou de como a besta deveio imaginação, Alejandro Ventura (1994) estabeleceu a tese de que a melhor forma para se compreender o comportamento do indivíduo na sociedade capitalista é pelo conflito profundo entre o desenvolvimento do potencial criativo versus os bloqueios do sistema, sejam estes de ordem material-externa ou moral-interna.

Muito diferente de ser apenas um “estado de espírito”, “representação estanque de uma faixa etária”, ou um “mal que se cura com o tempo”, a juventude é o momento da vida em que se dá com maior intensidade esse conflito, que interfere diretamente nas escolhas e na definição da identidade individual e coletiva das pessoas. Não podendo ser encerrada apenas pela determinação quantitativa de uma condição etária, a juventude se define especialmente como momento qualitativo em que o futuro da vida está sendo decidido, em que são tomadas as grandes decisões. E, se a juventude caracteriza-se pelo pico do conflito entre potencial criativo versus bloqueios, então essas decisões e escolhas se dão sob forte tensão e sob a figura da angústia.

Albert Camus (1997) mostrou que a saída do homem moderno angustiado é a revolta – o que pode adquirir dimensões sociais explosivas. Mas essa “revolta” não precisa ser de caráter estritamente político. Pode ser a mais “despolitizada” possível. Na verdade, ela é a busca de uma nova forma de reconhecimento, alternativa àquelas que o sistema bloqueou, àquelas que, diga-se assim, eram vinculadas ao que John Lennon, genericamente, chamou de “sonho”. É fundamentalmente a partir disso que a juventude vai se identificar pluralmente em diversas formas de reconhecimento: na religião, no modismo consumista, nas comunidades alternativas, nos esportes, na política, nas drogas, na violência, na apatia e no suicídio, na música e nas artes e, portanto, também, nas expressões mais propriamente denominadas como cultura(is). Nada disso impedindo que tais manifestações se comuniquem ou se rearticulem em diferentes graus entre si.

Ao contrário do juízo simplista e instrumental de uma certa esquerda, é socialmente superficial, historicamente falso e politicamente equivocado identificar a juventude com o progressismo. Ainda que os jovens tenham sido sujeitos marcantes em muitos eventos importantes da esquerda, não é possível ignorar, por exemplo, que na Alemanha a juventude nazista era, no tempo do grande Partido Social-Democrata Alemão, de Kautsky e Rosa Luxemburgo, muito mais numerosa do que a juventude socialista (IANNI in BRITTO, 1968: 237). Assim como não é atualmente plausível desconhecer os diversos grupos juvenis, dos skin-heads aos carecas do ABC, que reencontraram na violência a forma bárbara da diversão.

Contra a visão de que a juventude é algo quase “naturalmente” progressista – que bastaria a esquerda agitar as suas bandeiras para obter a sua adesão –, o melhor entendimento, sobre esse aspecto particular da formação ideológica juvenil, é o de Karl Mannheim (in BRITTO, 1968: 74), para quem a juventude não é nem progressista, nem conservadora. É uma enorme potencialidade em disputa. E é neste sentido que a cultura se investe de enorme valor na definição do modo de ser da juventude, em sua visão de mundo e em sua práxis social e política.

Sobretudo para o ponto de vista crítico, isso se revela explicitamente caro nos tempos atuais, quando o “novo irracionalismo brasileiro”, denunciado por Sérgio Paulo Rouanet (1992), externa o desprezo dos jovens pela cultura erudita, pela teoria e pela filosofia, pela música, pela literatura e pelas artes, numa anticultura alienada/estranhada, regada por um saber puramente instrumental, que se alimenta narcisicamente atrás de um microcomputador e no consumismo mercadológico irrefletido.

Enquanto a direita prega, a seu modo, o fim da ideologia [não como Daniel Bell (1980), que o fez teoricamente, mas como postura tacanha e rebaixada para disfarçar o caráter de sua própria ideologia – o da dissimulação fragmentária do saber e da desmobilização social], as organizações de esquerda e os setores sociais progressistas têm, em contrapartida, uma tarefa iluminista, qual seja, a da retomada do valor do conhecimento, da relação dialética afirmativa entre as culturas popular e erudita, da relação do homem com a natureza e, assim, do espírito crítico e autocrítico como um todo.

Evitando-se o subjetivismo axiológico, que sem se ater à dominação material imagina poder mudar o mundo pregando éticas universais abstratas, trata-se de apostar na formação intelectual crítica da juventude, elemento importante para o que Gramsci chamou de luta contra-hegemônica. Embate de idéias e valores, sim! Mas enraizado na vida real das lutas sociais entre as classes, que hoje não podem mais ignorar os temas ecológicos, étnicos e de gênero. Questões estas, entretanto, que só encontram sentido radical se vinculadas ao projeto de uma luta mais geral que arremeta “para além do capital”, como propõe Mészáros (in COGGIOLA, 1997).

A exigência da crítica – como forma da negação em andamento – não deve, porém, soterrar a clareza de que menos importante do que aferir “moralmente” o grau imediato de “politização” da juventude é decifrar dialeticamente o significado social e político daquilo que as juventudes estão expressando à sociedade. E ler as contradições dessa sociedade de modo imanente, na trama das relações que constituem o processo de sua totalidade. O conceito da condição juvenil como torrente de um conflito psicossocial dos indivíduos pressupõe a noção crítica de um comportamento oblíquo aos sistemas vigentes e, portanto, uma potencialidade de recusa. Mas que também pode virar simplesmente à direita ou ao comodismo em sua luta por reconhecimento. A percepção dessas culturas juvenis como modos contraditórios, porém legítimos, de ser/existir na sociedade capitalista, é um pressuposto para que com elas possa dialogar a cultura de intervenção que vem da crítica teórica.

Um filme como Trainspotting: sem limites (1996) ilustra, de modo exemplar, como um jovem pode resolver o seu conflito profundo (potencial criativo versus barreiras do sistema) sendo absorvido pelo próprio sistema. Tanto que, no começo do filme, Renton – o personagem principal – diz: “Ter uma vida, ter um emprego, ter uma carreira, uma família, ter uma casa, carros, amigos, ter um futuro... Para que eu iria querer isso? Preferi não ter uma vida. Preferi outra coisa. E os motivos?! Não há motivos. Para que motivos se tem heroína!” Ao passo que, no fim do filme, depois de dar um golpe nos amigos e arrumar muito dinheiro, se pergunta: “Por que fiz isso?” E responde: “Teria várias respostas, todas mentiras”. Daí ele assume que é mau, mas que foi a última vez, que isso vai mudar... E, então, diz: “Agora vou entrar na linha, vou ser como você: terei trabalho, família, carro, TV, um bom terno...” E arremata, na perspectiva do comodismo: “Vou viver esperando o dia de morrer”.

Renton é um jovem que resolveu o seu conflito no interior da perspectiva do sistema capitalista, fazendo entender o significado da fórmula “de como a besta devém imaginação” – não esquecendo de que “a imaginação no poder!” era um dos lemas do Maio de 1968. Não por acaso, intelectuais sixties engajados, como Gabeira e Cohn-Bendit, subscrevem, menos de 20 anos depois, no honesto interesse de saber o que foi feito dos ideais de sua geração, livros com títulos conjugados em sintomático passado como Nós, que amávamos tanto a revolução (GABEIRA, 1985). Seu objeto não é apenas um efeito dos ventos comuns da mudança histórica. Vem crivado pelo poder dos mecanismos de adaptação do sistema, que sempre querem se insinuar como normalidade racional. Veja-se, sobre isso, um ex-líder operário como Lula que, discursando como presidente de seu país, acha plausível reprisar a retórica positivista clássica da direita contra o movimento estudantil, segundo a tese de que a espécie humana “evolui” naturalmente da esquerda para a direita conforme a idade. E que o ponto racional de equilíbrio é o centro .

Isto posto, do ponto de vista da emancipação, a relevância histórica do trato do binômio juventude–cultura está em saber se a resolução do que se chamou aqui de luta por um novo reconhecimento se dará (re)canalizando as energias das rebeldias juvenis em favor do próprio sistema, ou se se requalificará substantivamente, convertendo-se em necessidades radicais, as quais, como disse a primeira Ágnes Heller (1978: 179) lendo Marx, constituem uma demanda cuja exigência qualitativa não pode mais ser satisfeita nos marcos da sociedade capitalista. Na hipótese dessa reversão dialética, a luta pelo reconhecimento encontra uma chance de superar as raias do estranhamento e de se afirmar no novo patamar de um processo de emancipação.

*Prof. de Filosofia da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL/MG)
Ex-morador da Casa do Estudante Universitário II (CEU II) e ex-estudante do curso de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Referências

BELL, D. O fim da ideologia. Brasília: Edunb, 1980.
CAMUS, A. O homem revoltado. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 1997.
GABEIRA, F. Nós, que amávamos tanto a revolução: diálogo Gabeira–Cohn Bendit. 3.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
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