quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A ANPOF progrediu na sua concepção de filosofia?

O XIV Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa (ANPOF) ocorreu em Águas de Lindóia, tendo terminado dia 8 de outubro. O que mudou? Em termos estruturais, pouca coisa. Os vícios da filosofia no Brasil continuaram presentes e, da parte da direção da entidade, nada se fez para que eles fossem diminuídos. Um deles, talvez o principal, é o referente à incapacidade crescente dos filósofos de conseguirem, mesmo entre seus pares (!), levar adiante “Sessões de Comunicações” que comuniquem algo além da notória falta de comunicação.

Os trabalhos dos GTs são amontoados todos, não dando tempo das pessoas irem para comunicações que não sejam as do seu GT. Mas, isso pouco importa, pois está subjacente à mentalidade dos membros da ANPOF que cada um só vai ouvir a comunicação do outro se esta interessa ao seu trabalhinho de mestrado ou doutorado, que está sendo desenvolvido ou irá se desenvolver. No passado, nós filósofos fazíamos chistes com os médicos, dizendo que eles estavam caminhando para a criação do “especialista da unha do dedão do pé esquerdo”. Hoje em dia, são os médicos que podem assim falar de nós filósofos. Uma boa parte de nossos trabalhos se tornou incomunicável, não por uma saudável especialidade, mas por falta de tirocínio no sentido de tornar o que é específico possível de ser integrado na conversação de quem tem uma formação semelhante.

A ANPOF não tem preocupação de fazer nascerem filósofos. Nem professores de filosofia. O interesse é criar a fórceps o “pesquisador em filosofia”. O pesquisador em filosofia? Sim! Neste modo e estilo: alguém incapaz de colocar sua pesquisa na discussão maior da filosofia. Esses esquisitos “pesquisadores” se reúnem, então, como as crianças pré-escolares brincando, ou seja, no célebre monólogo coletivo – eis aí a ANPOF. As exceções, nesse caso, ajudam a confirmação da regra, como de praxe.

No GT-Pragmatismo e Filosofia Americana tentamos romper com isso. Ampliamos o tempo de fala de cada um e forçamos que o debate aconteça de modo amplo, esperando que cada um que fez sua comunicação possa, no debate, integrá-la no conjunto maior da história da filosofia e no contexto dos problemas mais gerais da filosofia e das humanidades. Forçamos a conversação. Não é fácil, mas não paramos de tentar. É que nossa concepção de filosofia está na contramão do que parece ser um esdrúxulo consenso anpofiano. A noção de filosofia que a cúpula da ANPOF e seus mentores parece defender é a que levou Mafalda a identificar o “Deus da Telepatia”. Veja o quadro abaixo:

O autor da Mafalda, Quino, que eu saiba não viu nenhum Encontro da ANPOF. Mas é como se tivesse assistido todos. Há alguns departamentos de filosofia, em universidades, que realmente colocam não Sócrates ou Platão como suas imagens emblemáticas. Nem mesmo a coruja de Athena que, enfim, voa e, por isso, amplia horizontes. Usam o Pensador de Rodin. Alguns até usam outra coisa, mas, pelo que fazem, deveriam usar o Pensador de Rodin. A idéia que fazem da filosofia não é a dos filósofos autênticos, da filosofia como ela nasceu, do debate público e da investigação que só pode se realizar por meio de atividades como, por exemplo, o elenkhós de Sócrates, ou seja, a investigação em conjunto, coletiva. Ou seja, é como se tais professores nunca tivessem lido Platão. Eles não notaram que Platão escreveu diálogos! Eles não perceberam que a investigação de Platão se dá na comunicação. Não conseguiram ver que, mesmo para escrever, Platão não fez outra coisa senão colocar a palavra em trânsito, deixando-a mudar de significado como ela realmente muda no diálogo vivo – o de Sócrates. A mentalidade anpofiana fala em “encontro” e “comunicações”, mas ela trabalha na base da telepatia. O Pensador de Rodin, como visto por Mafalda, é o símbolo máximo do entendimento anpofiano de pesquisa em filosofia. E pior: talvez esse seja o entendimento, mesmo, do que seja um filósofo, para a cúpula da ANPOF e seus mentores.

Uma pessoa solitária, que pensa sozinha, fala o que outros não entendem e que fingem que entendem – eis o “filósofo” anpofiano. Ora, quem pensa sozinho não pensa absolutamente nada. Aliás, essa idéia de filosofia como o “cultivo do pensar” é outra coisa esquisita que, na denúncia da Mafalda, é antes a telepatia que qualquer coisa realmente chamada de “pensar”. O anpofiano típico leu Kant e imaginou que “pensar pela própria razão” e ser autônomo era pensar solitariamente. Mas, de fato, esse anpofiano não pensa sozinho. Na verdade, como ele sempre apresenta aos outros antes o seu orientador que o seu próprio trabalho, a sensação que temos é que, de fato, ele imagina que nada é feito pela sua própria razão, e que vale mais, mesmo, o juízo de autoridade. O cultivo do pensamento solitário se transforma, enfim, na subserviência ao orientador que, por sua vez, é a subserviência aos que lhe dão bolsas e notinhas para o seu programa de mestrado ou doutorado, nos órgãos de fomento à pesquisa. Triste caminho da filosofia no Brasil.

© 2010 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ

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