sexta-feira, 28 de maio de 2010

A filosofia no Brasil

por João Carlos Salles (UFBA)

A Bento,
nosso melhor exemplo

Em 1968, Bento Prado Júnior foi chamado a escrever sobre a filosofia no Brasil. Logo ao início de seu texto, confessa-se diante de “tarefa particularmente embaraçosa”. Como falar afinal da filosofia no Brasil, se incerto que tal houvesse – ao menos, em sentido próprio e autêntico? A filosofia, por estas terras, não teria ainda registro de nascimento, pois, ao contrário da nossa literatura nacional, não conformaria um sistema, quando enfim “ler um autor significa interpretar a distância que o separa dos demais”. E, assim como a história não poderia prescindir do alfabeto ou do Estado, a filosofia não poderia começar sem tradição escolar ou sem alfabetizados, no sentido ao menos de que, nessa profissão incerta, lemos e escrevemos filosoficamente quando não mais o fazemos sozinhos.

Não há, decerto, que se negar o eventual brilho de alguns indivíduos, a presença outrora de grandes nomes; entretanto, fora de um contexto propício, seu trabalho antes parecia nascer “de um secreto investimento em formas improváveis”. Bento matizava a dificuldade logo em seu título (“O Problema da Filosofia no Brasil”), pois difícil uma descrição mais extensa, quando quase sempre o que se fazia era mera divulgação ou, em certos casos, puro desatino. Assim, deslocava o tema do fato quase inexistente para a dificuldade mesma do projeto, inventando como desafio o que ainda não seria realidade – no caso, uma filosofia nacional. Tal projeto se apresentaria na consciência comum de uma carência, desdobrando-se na “experiência de uma temporalidade invertida”, na qual, como em interminável introdução metodológica, a filosofia da filosofia precederia a própria filosofia.

Pensar sobre a possibilidade de uma filosofia, confrontando nossa pouca tradição com projetos que se nos afigurariam externos, bem poderia levar-nos à nostalgia de uma cultura que, nunca tendo existido entre nós, se veria contudo ameaçada pela barbárie ou, ainda pior, pela civilização. Devemos convir, talvez por princípio e como estratégia de reflexão mais produtiva, que sempre deva ser incerto se há ou não uma filosofia. E mesmo deixando de lado a cautela, é sabido que, apesar de alguma mudança, ainda nos lemos e nos citamos pouco. Além disso, nosso repertório de problemas, quando singular, ainda é parco, de modo que a distância para com nossos pares costuma ir sem interpretação. Por isso, quem sabe, por um traço talvez cultural cujo exame é aqui dispensável, o gênero resenha é pouco fecundo entre nós, exatamente por trazer extremos opostos como suas expressões mais regulares: o encômio e o libelo destruidor, como se possível escrever sobre colegas apenas para bajulá-los ou para destruí-los.

Em todo caso, quase quarenta anos depois e em meio a continuidades, podemos constatar mudanças significativas. Por exemplo, talvez já possamos contornar a temática de uma filosofia nacional, antes ineludível. Ou, melhor ainda, ao enfrentá-la, talvez já o façamos sinalizando filiações e diferenças, ou seja, participando de um debate no qual, ao selecionarmos um interlocutor, logo nos situamos em alguma tradição. O tema de uma filosofia brasileira não perdeu seu sentido; continua um desafio teórico e mesmo é objeto de investigações inovadoras, que bem ultrapassam o registro de efemérides ou o escrutínio de influências exógenas e de singularidades em pensadores obscuros; entretanto, não mais precisa colocar-se como condição prévia para uma filosofia no Brasil, podendo tornar-se, no futuro, o resultado de reflexão sobre um solo não mais inane.

Bento também pode ser chamado a testemunhar a respeito desse deslocamento. Em texto recente, de outubro de 2006, destinado à plenária de abertura do XII Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF (que presidiu por duas gestões), constata um deslocamento que “metamorfoseou radicalmente o estilo da atividade intelectual”. Uma metamorfose que, tendo alcance global, reveste-se ainda de cor local, devendo matizar, ora positiva ora negativamente, a simples constatação da nova realidade filosófica nacional, seu evidente crescimento e sua mais bem distribuída melhoria de qualidade. A pergunta imediata, aí contida ou contrita, parece simples e natural: A que preço? E Bento não agarra da metamorfose apenas seus traços luminosos, compreendendo bem que, na Academia, nada se faz sem implicações políticas, sendo a luta teórica muita vez a continuação da guerra por meios mais sutis. Assim, cabe estar alerta aos novos tempos, cuja força é, todavia, benfazeja e evidente. A reserva de Bento tem então sabor de proposta política, a um só tempo, para academia e para a dieta filosófica, recomendando que, em ambos os casos, evitemos a unilateralidade dos exemplos. De certa forma, cumpre transformar em um valor o efetivo pluralismo da comunidade filosófica nacional ou, na formulação de Bento, que ultrapassa em muito um mero recado a colegas reais ou imaginários, trata-se de praticar uma “recusa radical de todo e qualquer monismo estilístico”.

Temos agora o luxo de afirmar o efetivo trabalho filosófico no Brasil. E isso pode ser descrito de modo objetivo. No Brasil, assim em diversas áreas da filosofia como em diversas regiões do país, estão dadas as condições para uma formação autônoma e completa – o que se traduz especialmente na produção regular de Dissertações e Teses de qualidade. E, por já existir efetivamente, cumpre até evitar predicar o que deva ser, mesmo cabendo cobrar, em qualquer de suas formas, que o seja com qualidade. Considerando então sua existência efetiva e não a invocação de uma expressão que presuntivamente lhe seja conatural, podemos afirmar que uma vagueza e uma multiplicidade importantes fazem parte de nossa virtude: a filosofia no Brasil não tem um estilo próprio, uma univocidade, que, em nosso caso, tendo em conta nossa dimensão e nossa história, seria nefanda e restritiva, e antes funcionaria como um óbice à procura de uma excelência acadêmica.

Agravada por uma arbitrariedade do regime militar, que retirou a filosofia do currículo do ensino médio, a metamorfose da filosofia brasileira dependeu em muito dessa condição pela qual, entre nós, no que podia ter de qualidade, a filosofia se tornou uma coisa universitária. A metamorfose se deu sobretudo nesse campo, associando-se também (em especial, nos últimos 25 anos) a uma profissionalização generalizada da academia brasileira, que passou a cobrar titulação o­nde antes imperava o notório saber e redefiniu a malha dos profissionais que, nos departamentos universitários, se dedicava à filosofia. Assim, um movimento geral de valorização da pesquisa e de certos tipos de produção (movimento oriundo de outras áreas do saber e pautado por critérios de avaliação muitas vezes estranhos à reflexão filosófica) passou pouco a pouco a imperar, inclusive na filosofia e mesmo nos departamentos mais afastados dos principais centros. Tornando-se coisa universitária, cobrando títulos universitários e produção em veículos mais credenciados, vimos transformarem-se departamentos, às vezes com alguma violência, não sendo certo que as novas qualificações sempre significassem melhor qualidade. Em todo caso, como um movimento geral, podemos notar que, por todo país, departamentos foram renovados preferindo profissionais formados segundo os novos padrões e as cobranças competitivas de uma pós-graduação em franca expansão. Se houve erros (e não foram poucos), esse movimento contribuiu ao menos para superar a subordinação de nossos departamentos à influência histórica, por exemplo, das academias de letras.

A filosofia entre nós é, pois, coisa universitária. Empregados, em sua maioria, do Estado, nosso trabalho se profissionalizou em virtude de uma generalizada mudança em nossa vida universitária. Por conta disso, como coisa universitária, a formação em filosofia se obrigou a compartilhar com as outras áreas certas características, inclusive para sobreviver em ambiente que, outrora, podia conformar uma prebenda, mas que se tornou inóspito a quem não se mostrasse apto a competir por recursos e não adotasse algo do perfil de cientista. Regidos por novas regras para o trabalho acadêmico, vivemos o deslocamento do ócio produtivo para o negócio, por vezes, improdutivo.

Ao lado do ensaio, do tratado, do comentário, passaram a fazer parte do nosso repertório projetos de pesquisa, relatórios, prestações de conta, pareceres, de sorte que, sem nos julgarmos necessariamente cientistas, fomos obrigados, com algumas dificuldades, a estratégias semelhantes para nossa afirmação profissional. Uma prática tornada igual às outras pelas regras da universidade – de modo mais cruel, pelas regras de financiamento da universidade em que se instala e, logo, mais imediatamente, pelas regras das agências de fomento. Assim, a filosofia, tendo-lhe resistido por um tempo, inclusive por uma inutilidade que, em certo sentido, lhe é própria e honrosa, passou a vivenciar um duplo registro (e uma quase cisão) em nossa vida universitária: ser financiada apenas pelo Ministério da Educação ou também obter recursos do Ministério da Ciência e da Tecnologia, à medida que a formação acadêmica (financiada pelo Ministério da Educação com bolsas de estudo e salários) parece tão-só preparatória para a carreira acadêmica, quando enfim começa e nunca termina a luta pelo financiamento de infra-estrutura de pesquisa e por bolsas de produtividade.

Acompanhou e favoreceu especialmente essa metamorfose uma cumplicidade nem sempre feliz com o sistema de avaliação da CAPES, que, todavia, tem méritos inegáveis no estabelecimento de padrões mais rigorosos para o trabalho acadêmico nas mais diversas áreas. No caso da filosofia, o sistema de pós-graduação acompanhado e avaliado pela CAPES expandiu-se vertiginosamente nos últimos 25 anos. Com efeito, quando foi criada a ANPOF, cujos membros são os programas credenciados, tínhamos cerca de 12 programas, proporcionalmente bastante concentrados na região sudeste. Hoje, são 33 programas por todo país, oferecendo 32 cursos de mestrado e 13 de doutorado. Essa expansão acompanhada, embora talvez nem sempre acertada, possibilitou uma autonomia nacional da formação de pesquisadores e, certamente, constituiu referências nacionais comuns para a pesquisa em filosofia.

Com isso, temos hoje, entre outros elementos, uma literatura nacional que, bem ou mal, vai fixando referências – algumas, incontornáveis. É assim que, entre nós, tem se gestado uma tradição de comentários e contribuições relativamente singular, de sorte que, por exemplo, bem podemos reconhecer uma matizada recepção nacional da obra dos empiristas, uma nietzscheana específica, uma quase epopéia marxista, uma extensa e diversa configuração fenomenológica, uma certa tradição analítica, um conjunto expressivo de estudos sobre o ceticismo, uma forte tradição de estudos sobre pensadores do XVII, entre tantos outros. E mesmo áreas anteriormente desassistidas contam hoje com referências importantes, como é o caso dos estudos de antiga e de medieval. A julgar, porém, pelo volume de trabalhos apresentados nos Encontros da ANPOF, cumpre registrar, como um foco privilegiado da formação de pesquisadores no Brasil, o expressivo número de trabalhos sobre Kant e o idealismo alemão.

Podemos, pois, com algum otimismo e muitas expectativas, afirmar um salto de qualidade, como se esta dormitasse por um tempo em acúmulos quantitativos. Essa rede de trabalhos filosóficos associados à expansão da pesquisa de pós-graduação no Brasil, de o­nde partem decerto nossas referências mais sólidas e influentes, encontra sua expressão mais clara nos Encontros da ANPOF. Há outras associações, com papel valioso, a exemplo da SEAF. Mas, não nos cabendo fazer história de nossos cismas e diásporas, preferimos antes um breve retrato, um instantâneo, um rápido esboço de nosso panorama atual e de nossos desafios. Por isso, a narrativa centrada na pós-graduação e, desse modo, a prioridade concedida ao trabalho da ANPOF.

Assim, no mais recente encontro, tivemos (após seleção feita por grupos de trabalho e programas) a aprovação de 1.118 trabalhos, tendo desses confirmado a presença no encontro cerca de mil participantes. Esses trabalhos puderam ser agrupados tematicamente, sendo parte significativa coordenada segundo a apresentação por Grupos de Trabalho da ANPOF – atualmente, quarenta e três. Sem dúvida, a ANPOF se consolidou como a mais importante sociedade científica da área de filosofia, tanto por seus Encontros, quanto por sua relação privilegiada de diálogo com as agências e com a comunidade, sendo hoje usuários de sua lista mais de seis mil pessoas, que, de algum modo, estão vinculadas ao trabalho da filosofia no Brasil.

A força da ANPOF, sua grande representatividade, não pode camuflar o fato de ela estar ligada sobretudo ao fortalecimento da pós-graduação, cujo melhor sinal é, sem dúvida, a produção regular de trabalhos acadêmicos com excelência – principalmente, Dissertações e Teses. Por outro lado, a ANPOF voltou as costas por muito tempo à temática do ensino, que muitas vezes foi encampada por profissionais um tanto afastados do específico do trabalho filosófico. O resultado preocupante fora o de se passar por reflexão filosófica o que, muita vez, é banalização do saber. Por isso mesmo, quando primeiro se apresentou a temática da volta da filosofia ao ensino médio, profissionais sérios, com fundadas razões, expressaram o temor de um dano resultante de conhecimentos ditos filosóficos serem veiculados para adolescentes por professores incompetentes, mal formados e, logo, aptos apenas a mal formar as novas gerações.

A preocupação era decerto legítima. Entretanto, já não dava conta do fato de que a própria rede de pós-graduação, mesmo quando afastada das preocupações com o ensino, não deixou de renovar os quadros de praticamente todos os centros do país, ao tempo que ainda nos ofereceu critérios públicos para separar o joio do trigo. Esperamos que hoje seja bastante mais fácil, mesmo sem sucesso garantido, denunciar os mercadores do templo ou quem apenas finge falar javanês.

Em meio a novas condições para o trabalho em filosofia, podemos listar alguns desafios. Em primeiro lugar, tendo alcançado grande êxito em firmar uma comunidade nacional de pesquisadores, o sistema de pós-graduação, premido pelas mesmas forças que o impulsionaram até aqui, precisará encontrar respostas próprias para um novo desafio, o da internacionalização, de sorte que ela expresse excelência e não um exercício subserviente que venha a desnaturar nosso trabalho.

Nesse sentido, o documento de área da filosofia, que se encontra na página da CAPES e serve à avaliação dos programas, precisa muito ser aprimorado. Além disso, ao aprimorar-se, deve manter as regras de avaliação como dependentes de um sistema contínuo, de modo que a excelência valha para todos os cursos, não servindo, como expressão de um retrocesso, para separar os cursos e as regiões. Caso o faça, estará retirando seus próprios méritos e voltando a cindir uma comunidade que, afinal, ainda mal se constituiu. Nesse caso, então, cumpre avaliar nossa produção filosófica por normas semelhantes e sobretudo qualitativas, de sorte que, ao fim e ao cabo, a excelência nacional coincida com um padrão internacional.

Um segundo desafio se nos apresenta com a implantação da filosofia no ensino médio. Resultado de uma ampla luta da comunidade filosófica, a implantação atende a reclamos legítimos, mas não é uma panacéia. Ela não vem resolver as graves carências de formação dos professores do ensino médio, mesmo que a renovação nacional das Universidades potencialmente nos faculte ações institucionais que favoreçam uma formação urgente e continuada de quantos cuidarão da difícil tarefa de aproximar adolescentes das dificuldades e das delícias próprias do saber filosófico.

Nesse sentido, vale lembrar, não sendo uma panacéia, o ensino de filosofia tampouco é um placebo, de sorte que sua introdução, em qualquer caso, seria inofensiva. Como bem o sabemos, em sendo mal feita, ela pode causar grande dano, justificando os mais terríveis temores de quantos se lhe opunham.

Temos então uma difícil tarefa, a mobilizar Secretarias de Educação, Departamentos, Cursos de Graduação e de Pós-graduação. Mais ainda, temos o desafio de continuar a aproximar, segundo medidas elevadas, segundo as medidas do melhor trabalho acadêmico, os profissionais que se dedicam à pesquisa e os que se dedicam ao ensino.

Ao lado da internacionalização, que tudo tem para mobilizar muita energia dos melhores pesquisadores, e da implantação no ensino médio, que tudo tem para consumir enorme esforço de nossas instituições de ensino, podemos antever ainda um novo desafio. Em processo semelhante ao que, na Europa, constitui o processo de Bolonha, tem crescido no Brasil a proposta de uma reorganização radical da arquitetura dos currículos dos cursos de graduação, com a introdução de bacharelados interdisciplinares, a serem realizados em três anos, ao término dos quais o graduado não teria ainda uma profissão específica.

Nesse caso, os defensores da proposta de Universidade Nova não se cansam de antecipar um papel de destaque para a filosofia. Entretanto, em um quadro de formação geral, corremos o risco de ver retroagir o movimento que, no que teve de melhor, caracterizou a transformação da qualidade dos cursos de filosofia por todo país, tanto na graduação quanto na pós-graduação, a saber, uma atenção mais profissional aos textos, um tratamento dos argumentos infenso à generalidade ou à literatice.

Os defensores da Universidade Nova insistem então ser necessário afastar a estreiteza da disciplinaridade, inclusive para combater a escolha precoce de uma profissão.

Com efeito, a proposta tem assim muitos méritos e pode oxigenar muitos cursos. Mais ainda, tem encontrado cada vez maior apoio governamental. É de temer entretanto que, se ela pode prejudicar fundamente algum curso, esse seja o de filosofia, isto é, prejudicará exatamente aquele único curso em que o aprofundamento disciplinar em nada coincide com uma forma qualquer de estreiteza, sendo nossa formação detalhada, minudente, desde o início, talvez o único modo de estar em nosso caminho próprio.

Marcada por uma cisão anterior, que a muito custo procuramos superar, podemos ver cindir-se a comunidade pela diferença entre os desafios colocados à pós-graduação e aqueles outros colocados a todo país, que ora procura reconciliar-se amplamente com o ensino da filosofia. A marcha em direção à internacionalização parece tão irreversível quanto aqueloutra rumo à educação básica. Não podendo talvez ser conduzidas pelas mesmas pessoas, resta procurar que os caminhos conservem algo em comum.

Não bastasse esse risco de cisão histórica, quando a pesquisa só entrevê como um seu correlato no ensino médio alguma prestação de serviços de inserção social, não deixa de ser difícil propor que, entretanto, sejam capazes de entremesclar-se teoricamente. Por outro lado, com propostas como a da Universidade Nova, temos o desafio de evitar que se separem o ensino de graduação e o ensino de pós-graduação, pois corremos o risco de voltar a ter em nossos Departamentos diferenças sistemáticas entre professores, ou mesmo destinações diferentes a Departamentos tornados diversos em suas vocações, doravante cada vez mais estranhas entre si.

Os desafios são muitos. A esperança de vencê-los coincide com a possibilidade de manutenção de uma boa política por quantos estejam (mesmo em papéis distintos e acaso conflitantes) à frente de nossas instituições. Trata-se de uma bandeira a ser garantida, particularmente, pela ANPOF, que soube formular seu compromisso com a constituição de uma comunidade nacional, sem concessões com respeito à qualidade almejada para o trabalho acadêmico e também sem restrições doutrinárias. Concordando com nosso amigo Giacoia, “devemos ser inquivocamente meritocráticos, rigorosos quanto a nossos padrões consensuais de qualidade da produção filosófica, intransigentes em relação a nossas especificidades, mas também pluralistas, sobretudo anti-sectários, tolerantes com o trabalho sério, abertos ao dissenso qualificado”.

Nada mais distante da filosofia no Brasil que a interrogação sobre a natureza de uma possível filosofia brasileira, pois já precisamos lidar com sua realidade, ainda enquanto seus resultados oscilam entre ótimos e incipientes. Não se avança adjetivamente no que exige uma dimensão substantiva. Por resolvida ou insolúvel, a questão mostra-se inócua ou impertinente. Entretanto, tendo o que relatar e não precisando fazer uma história de efemérides e de grandes nomes ou tampouco uma história de mentalidades, aproximamo-nos do tema não mais sob o signo da oposição entre nossa instalação nacional e a universalidade da filosofia, que nos obrigaria a depor, como que de fora, sobre o sentido de nosso trabalho.

É verdade que, anteriormente, talvez não houvesse outro caminho. Ou seja, não havendo suficiente densidade no país, vivendo apenas de surpreendentes raios em céu azul, divididos entre grandes nomes e um contexto risível, restava apenas esboçar algum sentido, elevado ou precário, para a aventura. Hoje, parece possível esboçar uma política, boa ou má, para o efetivo, e não apenas projetos para o virtual. Como arremedo de conclusão de um parto laborioso, podemos retomar o enunciado de uma tese básica muito simples: Passados quase quarenta anos do texto de Bento, indicamos apenas haver muito a dizer.

Concluindo então nosso instantâneo, vale a pena explicitar ainda mais um sentido para nossa homenagem a Bento, ao refletirmos sobre essa filosofia que se faz sobretudo em língua portuguesa. Afinal, Bento é exemplo em muitos sentidos e também especialmente em sua escrita, que sabia valorizar a expressão e a língua.

Dessa forma, à luz de seu labor, fazer filosofia implica um esforço argumentativo, mas também um esforço em favor da palavra. Ademais, em seu trabalho, no qual soube exercitar uma pluralidade de diálogos, mostrou-se em seu elemento enfrentando temas os mais afastados, exemplificando um nosso modo próprio de fazer filosofia, pelo qual podemos enriquecer-nos inclusive pelo comentário. Foi assim que Bento ajudou a inventar uma pauta bastante nossa de estudos de Bergson, de Wittgenstein, de Rousseau, bem como de tantos outros eventualmente tocados por sua palavra. Em todos esses casos, ensinou-nos a superar a divulgação pelo diálogo. Bento é, então, refinamento, exercício filosófico elevado. E agora, quando selecionamos sua palavra, apenas fazemos parte desse jogo pelo qual, em atos e omissões, temos uma tradição filosófica no Brasil.

João Carlos Salles é professor do Departamento de Filosofia da UFBA

Fonte: IDEA

terça-feira, 18 de maio de 2010

Como deve ser um Plano Nacional de Educação?

Por Otaviano Helene e Lighia B. Horodynski-Matsushigue
A história como guia

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sancionada em 20 de dezembro de 1996, exigia que o poder executivo encaminhasse ao Congresso Nacional, em um prazo de um ano, um projeto de Plano Nacional de Educação (PNE). Esse prazo se esgotou sem que o governo federal tivesse cumprido com sua obrigação legal.

Tendo em vista a exigência da LDB e a história de lutas da sociedade brasileira em defesa da educação pública, muitas entidades da sociedade civil, organizadas por meio do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública e de dois Congressos Nacionais de Educação, elaboraram um PNE e prepararam-se para participar ativamente das discussões que ocorreriam em âmbito nacional. Esse PNE da sociedade brasileira foi apresentado à Câmara dos Deputados no início de 1998. O projeto do executivo foi apresentado um dia depois.[1] Assim, o Congresso Nacional passou a ter em mãos dois projetos de PNE.

Os dois projetos foram debatidos pelo Congresso que acabou por aprovar uma versão que continha vários itens extraídos da proposta apresentada pelas entidades da sociedade brasileira, em especial a previsão de recursos financeiros, coisa que inexistia na versão do poder executivo. Embora os cálculos apresentados pelo PNE da sociedade brasileira estimassem em 10% do PIB os recursos necessários para viabilizar uma real recuperação da educação pública nacional e, em conseqüência, a possibilidade de que seriam cumpridas as metas estabelecidas, o Congresso nacional aprovou um valor menor, 7% do PIB[2]. Apesar desse rebaixamento, a definição dos recursos necessários, tendo como base de cálculo o PIB nacional, ou seja, uma medida da efetiva capacidade de investimento de cada nação, foi considerada uma vitória, ainda que parcial. Além disso, o valor aprovado continua sendo cerca de duas vezes superior aos valores historicamente investidos em educação pública no país.

Os 10% do PIB destinados à educação eram uma espécie de sonho para os educadores e todos aqueles interessados na promoção do desenvolvimento social, cultural e econômico do país: em uma década teríamos mudado completamente o caótico, injusto e ineficiente sistema educacional brasileiro. O valor aprovado pelo Congresso Nacional, se não era um sonho, pelo menos nos livraria da crônica falta de recursos e deixava ainda alguma margem para perspectivas otimistas.

Entretanto e infelizmente, mesmo esse percentual reduzido foi vetado pelo então presidente Fernando Henrique. Assim, o PNE começou mal: havia metas a serem cumpridas, mas não havia a previsão de recursos para tal. De um plano, transformou-se em uma ilusão: como satisfazer as metas sem os necessários recursos?

Assim que o PNE foi promulgado, iniciou-se uma campanha pela derrubada do veto aos recursos financeiros. Essa campanha fortaleceu‑se quando o programa apresentado pelo presidente Lula, em sua primeira campanha presidencial vitoriosa, previa o estudo da derrubada daquele veto. Embora a redação fosse essa - um estudo da derrubada do veto -, muitos otimistas a liam como um compromisso explícito com a derrubada do veto. Mas isso era ilusão: não houve iniciativas sérias nem do poder executivo, nem do parlamento, para derrubar o veto, que foi mantido.

Assim, inexistindo qualquer outra previsão de recursos para viabilizar o desenvolvimento educacional, qualquer ilusão desaparecera: se o sonho dos 10% do PIB destinados à educação desapareceu quando o Congresso Nacional reduziu o valor para 7%, o veto do governo FHC nos trouxe de volta o pesadelo de sempre.

Metas não atingidas

O PNE aprovado e ainda em vigor contém várias metas que deveriam ser atingidas em 10 anos, a se completarem no início do próximo ano. Entre elas estava o crescimento significativo da educação infantil (crianças de até 6 anos de idade), redução das taxas de repetência no ensino básico (fundamental e médio), a efetiva universalização do ensino fundamental (ou seja, a totalidade das crianças concluindo esse nível de ensino), a garantia de que a totalidade dos jovens pelo menos iniciasse o ensino médio e, quanto ao ensino superior, de que pelo menos 40% dos estudantes estivessem matriculados em instituições públicas. Havia metas também relativas ao combate do analfabetismo (que deveria ser erradicado até 2011), à formação de professores, à infra-estrutura material das escolas, entre muitas outras. É claro que para essas metas serem atingidas seriam necessários recursos; com o veto e sem nenhuma outra previsão de recursos, as metas, evidentemente, não seriam atingidas.

De fato, não foram. Ou, até pior: muitos indicadores do desempenho educacional na década de vigência do PNE simplesmente pioraram[3]. As taxas de conclusão dos ensinos fundamental e médio, que vinham crescendo, ainda que aos trancos e barrancos, a uma razão de cerca de 5% ao ano desde o início do século passado, estagnaram por volta do ano 2000, iniciando aí uma trajetória descendente.[4] Assim, não só as metas do PNE não foram cumpridas como nos distanciamos ainda mais de muitas delas. A década de 2000 marcou um dos dois piores períodos de retração ou estagnação da educação brasileira dos últimos 100 anos.[5]

Por que isso?

Por que isso aconteceu? Primeira razão: pela simples falta de recursos. Não havendo recursos é absolutamente impossível atacar o problema educacional. Pode-se aumentar o número de matrículas sem que sejam fornecidas às escolas e aos educadores as necessárias condições de atendimento (laboratórios, bibliotecas, aulas de reforço, cargas de trabalho toleráveis, salários adequados etc), que parece ter sido o que ocorreu ao longo da década de 1990, período no qual houve aumento dos indicadores quantitativos da educação. Mas esse aumento das matrículas, sem o necessário aparelhamento do sistema para atender adequadamente a quantidades maiores de estudantes, leva a uma piora dos indicadores qualitativos, o que também ocorreu ao longo da década de 1990, ilustrando o óbvio: apenas registrar matrículas não educa.

E mesmo essas práticas de apenas registrar matrículas têm um limite: o ponto em que não ir à escola é melhor do que ir. Quando esse limite é atingido, os indicadores quantitativos estagnam-se. E parece que isso realmente ocorreu por volta do ano 2000, quando as taxas de conclusão dos ensinos fundamental e médio começaram a se reduzir.

Segunda razão: não houve, realmente, um compromisso nacional com a educação escolar. Nem o executivo federal, nem o Congresso tentaram derrubar o veto aos recursos. Os outros entes governamentais (estados e municípios) não levaram a sério o PNE e nada fizeram para que fosse cumprido.

Se havia metas, o Congresso e o governo federal deveriam regulamentá‑las por legislações ou normas complementares. Não o fizeram. Se havia metas finais, deveríamos cuidar das metas parciais que, se não cumpridas, comprometeriam o cumprimento das metas finais. Nada se fez. Se havia metas nacionais a serem cumpridas, elas deveriam ser cumpridas em cada estado e município, os principais responsáveis pelo fornecimento da educação básica. Mas não foram. Governadores, prefeitos e secretários de educação simplesmente desconsideraram suas responsabilidades para com as metas e ignoraram a existência do PNE. Nenhum estado, nenhum município cumpriu nenhuma das metas que estavam sob sua responsabilidade.

Sem definir recursos e as obrigações financeiras e educacionais dos vários entes federativos, sem definir como as pessoas farão para garantir os direitos à educação que o PNE criou e a quem recorrer caso eles não sejam satisfeitos, sem regulamentar como as várias metas serão cumpridas e como, e quem, fiscalizará esse cumprimento e, ainda, prever punições pelo não cumprimento, o PNE é alguma coisa entre a ilusão e a enganação.

O que fazer?

A vigência do atual PNE se encerra em poucos meses e o Congresso Nacional deverá elaborar um novo. A pergunta adequada neste momento é: como deve ser e o que deve conter o próximo PNE para que não seja, como o atual, uma mera fantasia?

As respostas para essas questões podem ser encontradas nas origens da falência do atual PNE. Em primeiro lugar, deverá haver previsões de recursos suficientes para cumprir as metas estabelecidas. É ilusão (ou enganação) fazer uma lista de tarefas a serem cumpridas sem indicar claramente de onde virão os meios necessários para cumpri-las. Sabe-se, com ótima precisão, qual o investimento econômico necessário para se manter uma criança ou jovem em uma escola com nível de qualidade aceitável. Sabe-se quais os recursos necessários para uma escola ter condições de atender adequadamente seus estudantes e quanto é necessário para remunerar de forma adequada os profissionais da educação. Assim, o PNE deve tanto definir o percentual do PIB a ser destinado à educação pública, algo em torno de 10%, como qual será a participação de cada ente federativo (união, estados e municípios) na composição dos recursos.

Um novo PNE deve, também, estabelecer quais são as responsabilidades da União, dos estados e dos municípios, pois é inútil definir metas sem estabelecer quem deve cumpri‑las. Além disso, devemos atribuir responsabilidades e definir as conseqüências e punições para aqueles órgãos ou entes que não cumprirem sua parte. Talvez, neste aspecto, devamos também responsabilizar, além dos poderes executivos e legislativos, os órgãos do judiciário e de defesa da ordem jurídica, que passaram os últimos 10 anos observando uma lei nacional não ser cumprida sem nada fazerem.Deve-se, ainda, definir quais são as tarefas e obrigações dos órgãos de assessoria e apoio do ministério e das secretarias estaduais e municipais de educação, aí incluídos os Conselhos, nacional e estaduais, de Educação.

O Congresso, as Câmaras municipais e as Assembléias estaduais também deverão estabelecer regras complementares que viabilizem o cumprimento das metas a serem atingidas.

Conclusão

Não há um único país que tenha superado o atraso e as barreiras do subdesenvolvimento sem ter escolarizado sua população. Caso aconteça com um novo PNE o mesmo que ocorreu com o atual, o desenvolvimento (ou não) da educação brasileira continuará ruim: a educação será apenas um reflexo e subproduto do restante da realidade nacional e não um instrumento de promoção do desenvolvimento e um fator a se refletir positivamente na nossa dura realidade.

Tentar vincular o desempenho educacional futuro do país a eventuais recursos do pré-sal, usar frases de efeito, atribuir vagamente responsabilidades à "sociedade civil e empresários"[6], ou preencher papel com belas palavras será totalmente inútil e servirá para iludir por mais uma década a população brasileira. Serve, também, é claro, para manter nossa posição de atraso cultural, econômico e social.

Notas:

[1] Ambos os projetos estão disponíveis no endereço http://www.adusp.org.br/arquivo/PNE/. O plano aprovado pelo Congresso está em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10172.htm.
[2] Nesses percentuais do PIB estão incluídos investimentos municipais, estaduais e federais.

[3] O artigo "Análise dos indicadores de conclusão escolar nas últimas 5 décadas", publicado na Revista Adusp, n. 46, janeiro de 2010, pág. 47, apresenta a evolução recente de alguns indicadores educacionais brasileiros. A revista pode ser acessada pelo sítio da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo, http://www.adusp.org.br/revista/46/index.htm.

[4] Por volta do ano 2000, início da vigência do PNE, cerca de 75% das crianças completavam o ensino fundamental e 55% dos jovens completavam o ensino médio. Nos últimos anos esses percentuais reduzidos para a cerca de 70% e 50%, respectivamente.

[5] O outro período de longa estagnação ou retração dos indicadores educacionais ocorreu após a falência do projeto da ditadura militar, iniciando-se em meados da década de 1970 e durando até o final da década de 1980.

[6] As expressões "sociedade civil e os empresários", "sociedade civil organizada e os empresários" ou "empresários e a sociedade civil" associadas à palavra "educação" aparecem cerca de 100 mil vezes na Internet!

Otaviano Helene é professor no Instituto de Física da USP, foi presidente da Associação dos Docentes da USP (Adusp) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep).

Lighia B. Horodynski-Matsushigue é professora aposentada do Instituto de Física da USP e vice-presidente da regional São Paulo do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN)

Fonte: Caros Amigos

quinta-feira, 6 de maio de 2010

I EREFIL SUL abre inscrições

Comunicamos que desde o dia 1º de maio de 2010 foram liberadas as inscrições para o I Encontro Regional dos Estudantes de Filosofia da região sul do país. Essa primeira edição terá como tema as questões relacionadas com a formação dos professores de filosofia, além da própria organização do Movimento Estudantil de Filosofia. Acesse www.erefilsul.blogspot.com

O alojamento e a alimentação podem ser incluídos na inscrição, vide as modalidades de inscrição no blogue. O alojamento será realizado em salas de aula ou na área para camping sendo responsabilidade dos participantes trazer colchão, cobertores e barracas. Vale lembrar que teremos segurança durante todos os horários. A alimentação inclui as três refeições diárias e disponibilizamos uma opção para quem for vegetariano também na inscrição. Se inscreva antecipadamente para não pagar mais caro no dia do evento.

Esclarecemos que a submissão de trabalhos, seja voltado ao tema do evento ou na modalidade livre, está condicionada à participação integral no encontro. Ou seja, a apresentação de trabalhos é isenta de valores adicionais, pois é algo necessariamente voltado para os estudantes que participarão do I EREFIL Sul. As inscrições para o evento podem ser tanto de graduandos quanto de pós-graduandos.

Destacamos que há alguns dias encaminhamos correspondência para todas as coordenações de curso de filosofia do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do Paraná, para que as convocatórias fossem encaminhadas aos Centros e Diretórios Acadêmicos de Filosofia. Dessa forma, garantimos que todos saibam com um mínimo de antecedência para que organizem um ônibus ou alguns representantes para participar.

Mais informações ou dúvidas devem ser encaminhadas para erefilsul@gmail.com