As transformações do sistema brasileiro de Educação Superior na última década revelaram um avanço importante das instituições acadêmicas de caráter privado, com características empresariais. A observação desse quadro de crescimento no Rio Grande do Sul deve ser apresentada de forma desagregada em face da diversificação institucional e a importância assumida pelo grupo de instituições privadas sem fins lucrativos, dividas em filantrópicas, confessionais e comunitárias.
Os dados do Censo da Educação Superior levantados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anisio Teixeira, INEP, correspondentes ao ano de 2005, ilustram bem a configuração do sistema de Educação Superior no Rio Grande do Sul, no sentido de apontar o seu caráter marcadamente privado se considerarmos que, do total de 99 Instituições Ensino Superior (IES) presentes no estado somente 10 são públicas. Da mesma forma o sistema apresentase focalizado principalmente nas instituições de direito privado que constituem um total de 89, sendo que, destas, 48 IES correspondem às particulares com fins lucrativos, e 41, às IES confessionais, filantrópicas e comunitárias que se distinguem das anteriores por não auferir fins lucrativos. Por outro lado, o sistema apresenta características de descentralização e interiorização se considerarmos que do total de IES, 29 se encontram na capital e 70 no interior.
Os dados das matrículas reforçam as características apontadas anteriormente na medida em que do total de 338.913 alunos, 49.647 ou 14,6% encontram-se matriculados nas instituições públicas e 85,4% nas privadas. Dos 289.266 alunos matriculados nas instituições privadas, 262.423 alunos encontram-se alocados no grupo das privadas sem fins lucrativos localizadas tanto na Capital quanto no Interior do estado e 26.843 (9,3%), nas unidades privadas com fins lucrativos.
Do total de alunos matriculados na rede privada, 90,7% estão nas confessionais, filantrópicas ou comunitárias e destes 262.423, aproximadamente 42%, estão nas universidades comunitárias em sentido estrito ou laicas, do interior do estado, correspondendo a um total de 96.779 alunos de graduação no ano de 2005. Ver quadro abaixo.
Da mesma forma, cabe destacar ainda que, ao considerar o número de funções docentes envolvidas encontramos que, do total de 21.085 no Estado, 5.545 correspondem ao setor público e 15.440 ao privado das quais 13.653 estão sendo desempenhadas nas IES confessionais, filantrópicas e comunitárias.
Embora a singularidade do modelo comunitário tenha sido reconhecida na Constituição Federal (art. 213) e pela LDB (art. 20) como categoria exclusiva IES comunitárias no âmbito das instituições privadas, na prática são consideradas como um conjunto pertencente às instituições privadas sem fins lucrativos, conforme mostra o quadro acima.
As IES denominadas comunitárias têm passado nos últimos anos por situações reconhecidas, como ameaças aos princípios que constituem o modelo de instituições universitárias consolidado no país a partir do Rio Grande do Sul.
Elas compõem um modelo singular gerado por mobilização de setores sociais em várias regiões do estado. Tratava-se de resposta à expansão necessária das matrículas do Ensino Superior, a que o sistema federal não dava a devida cobertura ainda nos anos cinqüenta, mesmo que já se contasse com a sucessiva criação de unidades federais em Pelotas, Rio Grande e Santa Maria.
Os municípios que deram origem a IES não-estatais formularam projetos nascidos por mobilização de setores da sociedade civil, gestando, a princípio, unidades isoladas faculdades às quais se seguiram novas unidades, aglutinando-se e integrando-se de modo a fortalecer a idéia de construção futura de universidades.
São conhecidas as diferenças das origens entre as hoje denominadas universidades comunitárias, no entanto, algumas marcas estão presentes na sua constituição institucional: os princípios que formam seu ideário, sua inserção regional, transparência administrativa e compromissos democráticos. Não se constituindo na forma de instituições estatais, definem-se como entidades privadas, mas sem fins lucrativos, proclamando-se como “públicas não-estatais”, na medida em que estão submetidas a controles de sua gestão por órgãos colegiados com representantes das IES e da sociedade regional.
Tal condição tem sido explicitada nas teses do organismo representativo destas IES no RS, o Comung – Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas, que congrega 12 instituições de Ensino Superior, sendo que, dentre elas, duas (Feevale e Univates) são Centros Universitários. As Universidades Comunitárias laicas do interior do Estado do Rio Grande do Sul são: Universidade de Caxias (UCS), de Ijuí (Unijuí), Passo Fundo (UPF), Santa Cruz do Sul (Unisc), Integradas do Alto Uruguai e Missões (URI), da Região da Campanha (Urcamp), de Cruz Alta (Unicruz) bem como a Católica de Pelotas (Ucpel). Finalmente a Pontifícia Universidade Católica (Pucrs) e a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), embora reconhecidamente confessionais e localizadas na Capital do Estado e sua área Metropolitana, também integram o Comung.
Os vínculos com as comunidades de origem foram a emulação necessária para dar conta do crescimento dessas instituições, e suas estratégias de reprodução assentaram-se sobre os compromissos tácitos de expansão, seja no crescimento da planta física, aumento da oferta de vagas, da diversificação de cursos e da dispersão dos campi, seja na capacitação do corpo docente e no fortalecimento dos vínculos comunitários através da extensão. O crescimento foi contínuo até meados desta década a despeito de algumas perturbações de ordem financeira que as atingiram de forma diferenciada.
Além do significado importante de seus números, cabe destacar outra característica que demarcou a presença dessas IES: sua territorialidade, ou seja, seu ancoramento e enraizamento em áreas extensas de território do estado, onde exercem influência marcante e que definem a base da maior parte de recrutamento de seus estudantes. Essa foi durante muito tempo uma lógica determinante a impulsionar o foco de seu crescimento.
O cenário atual de profundas transformações no quadro da Educação Superior brasileira tem trazido para este modelo algumas perturbações cuja origem pode ser identificada com o caráter da expansão do Ensino Superior no país, principalmente depois de 2003/2004 com destaque para proliferação de instituições de caráter empresarial impondo novos padrões de competitividade.
A nova realidade redefine o caráter da competição por matrículas, potencializada por duas características antes não presentes: por um lado, a agressividade das investidas onde o item preço
torna-se um atrativo quase irresistível, difícil de ser acompanhado pelos métodos tradicionais de gestão das IES que são alvo desta competição e, por outro, a transgressão dos limites territoriais.
Com relação a este último ponto, são dois movimentos que atuam de forma isolada ou de modo articulado: um, que as empresas educacionais, em grande parte, compõem-se de grupos nacionais com atuação em áreas do país observadas sob o ponto de vista de seu potencial econômico, significando promessa de êxito dos empreendimentos; outro, o ensino a distância, complementa a desterritorialização, embora reconhecido como recurso potencializador para o acesso de grandes contingentes à educação superior.
Se considerarmos, dentro da categoria das comunitárias, filantrópicas e confessionais, somente o conjunto das sete Universidades Comunitárias do interior do Estado, que foram definidas como comunitárias em sentido estrito por serem laicas, estamos nos referindo a um conjunto de 5.483 professores, 4.701 funcionários, 270 cursos de graduação, 96.779 alunos de graduação, 279 cursos de especialização, 7.621 alunos de especialização, 27 cursos de mestrado, 855 alunos de mestrado, quatro cursos de doutorado, 4.464 bolsas Prouni e 818 bolsas de Iniciação Científica das próprias instituições ou de órgãos oficiais (www.comung.gov.br, setembro 2007).
Entre as sinalizações que o governo atual tem dado ao sistema de Educação Superior, a interiorização dos investimentos tem sido amplamente divulgada, de modo a compensar o desequilíbrio histórico entre o crescimento populacional e o abandono dos investimentos estatais. No Rio Grande do Sul, as iniciativas de constituição de novas unidades estatais já estão surgindo sem falar no papel de consolidação da Uergs com a Unipampa e as unidades de ensino técnico/tecnológico.
No entanto o paradoxo que se apresenta com essa estratégia é o de aprofundar as dificuldades das instituições comunitárias que precisam, de um lado, competir com o subsistema empresarial e, de outro, partilhar a demanda reprimida de matrículas com o setor público. A garantia de sua reprodução institucional nesse cenário precisa passar por dois campos de ação: um interno, da busca de alternativas de gestão, sem perder as suas características distintivas, principalmente no que se refere à sua inserção regional, seus mecanismos democráticos e seus vínculos comunitários; outro, do ambiente externo, através de medidas de governo que definam uma atenção especial para este modelo institucional.
* Professora do Departamento de Educação da UNISC