Antonio Negri rebate leituras hegemônicas e lança uma interpretação radical da obra do filósofo
Antonio Negri não se ocupa com as imagens menores e demole as duas outras, hegemônicas na história da filosofia. De maneira vigorosa, erudita e combativa, Negri articula a filosofia espinosana à história (econômica, social, política e intelectual) do século 17 para mostrar, antes de tudo, que a obra de Espinosa não é o reflexo passivo de sua época, mas uma compreensão de seu tempo que lhe permite pensar o futuro e abrir-se para ele.
Mostra também que há, como quer a tradição interpretativa, uma ruptura no pensamento espinosano, porém, contrariamente à tradição, Negri não a localiza onde se costuma vê-la, isto é, no momento em que, ainda neoplatônico renascentista, Espinosa teria lido a obra de Descartes e a de Hobbes, tornando-se, enfim, moderno.
Não, diz Negri. A ruptura é interna ao pensamento de Espinosa, cujas tensões e aporias o conduzem para fora do legado da Renascença, para além do cartesianismo e do hobbesianismo. Mostra, ainda, que o projeto filosófico, científico e tecnológico hegemônico no século 17 é uma operação ideológica para dissimular a crise constitutiva do capitalismo, operação apoiada nas idéias de transcendência (de Deus e do Estado), de hierarquia ontológica dos seres (e, portanto, das classes sociais), de finalismo ético-metafísico (as virtudes são modelos prévios que comandam de fora a ação humana, segundo a vontade de Deus e do monarca absoluto que representa a divindade na terra) e de dominação técnica da Natureza. Diante dessa operação, a filosofia de Espinosa é uma anomalia selvagem porque, além de afastar esse conjunto de idéias, criticando-as, substitui-as por outras que constituem uma verdadeira revolução filosófica.
A revolução espinosana
As inúmeras interpretações do espinosismo assentam-se em duas vigas mestras. A primeira é fincada na compreensão da filosofia espinosana como teologia metafísica da produção da realidade a partir do desdobramento da essência da substância infinita e una-única da qual os seres finitos são efeitos, consequencias e propriedades. É a viga mestra do panteísmo e da imanência de Deus ao mundo – Deus sive Natura, Deus ou Natureza. A segunda viga mestra é fincada na afirmação de que as obras políticas de Espinosa (o Tratado Teológico-Político e o Tratado Político) são textos de circunstância, derivados do sistema metafísico e sem maiores consequencias para este último.
Opondo-se a isto, Negri afirma que:
1) A metafísica panteísta, que vai de Deus (a Substância una-única infinitamente infinita) aos modos finitos (os seres singulares existentes na Natureza, entre os quais os seres humanos) constitui a primeira filosofia de Espinosa, abandonada pelo filósofo por uma ontologia materialista na qual o ser infinitamente infinito é pensado e compreendido não a partir de sua essência (como no panteísmo renascentista e no cartesianismo), mas de sua potência infinita para existir e agir e, mais do que isto, tal potência resulta da potência dos seres finitos, isto é, é produzida pela ação dos seres finitos e é conhecida pela ação (experiência e práxis) dos seres humanos. Em outras palavras, a totalidade substância-modos (1) ou Deus-Natureza, ou infinito-finito é constituída pela potência de existir e de agir dos seres finitos singulares imanentes à potência infinita do ser absoluto: Natureza e/ou Deus é a ação das coisas singulares finitas e práxis humana;
2) A mudança na filosofia de Espinosa ocorre quando o filósofo redige o Tratado Teológico-Político, descobrindo que a história e o social fundam e constituem a ontologia e não o contrário. Assim, a obra política é o núcleo da filosofia espinosana.
A revolução filosófica espinosana é a inauguração do materialismo moderno: o histórico-social, isto é, a práxis, funda a ontologia; a ação humana funda o ser e o absoluto. Revolução filosófica porque Espinosa altera radicalmente a perspectiva teológico-metafísica da tradição e do século 17, baseada na essência infinita e perfeita de Deus e na criação do mundo ou das essências finitas pelo intelecto e vontade da divindade.
Abandonando a perspectiva essencialista (que Negri identifica com a teoria espinosana dos atributos divinos) pela idéia de potência infinita (o ser ou substância como espontaneidade absoluta de auto-produção) e partindo do finito (a potência de existir e agir dos modos singulares ou seres singulares concretos existentes), para o infinito, Espinosa lança por terra a ontologia platônica (ou o neoplatonismo renascentista) e a teologia cristã (transcendência divina, personalidade divina, criação do mundo pela vontade e intelecto divinos, imortalidade da alma, livre-arbítrio e pecado, salvação messiânica). Ao fazê-lo, Espinosa retira o solo onde se movem o cartesianismo, o mecanicismo, a Reforma e a Contra-Reforma.
Escreve Negri:
“A anomalia filosófica de Spinoza consiste nisto: na irredutibilidade de seu pensamento ao desenvolvimento do racionalismo e do empirismo modernos, que são filosofias subordinadas à crise, filosofias sempre dualistas e irresolutas, voltadas para a transcendência como território exclusivo de réplica ideal e de dominação prática do mundo – e, portanto, filosofias funcionais par a definição da burguesia, para seu definitivo auto-reconhecimento como classe da crise e da mediação... A anomalia do pensamento de Spinosa em relação à sua época se torna então anomalia selvagem. Selvagem porque articulada com a densidade e a multiplicidade de afirmações que surgem da extensa afabilidade do infinito. Há em Spinoza o prazer de ser infinito. Que é prazer do mundo. Quando o paradoxo do mundo, a tensão nele aberta entre infinidade positiva e infinidade de determinações, se desenvolve em atividade e se reconhece no processo constitutivo, então o prazer do mundo começa a se tornar central e a anomalia se faz selvagem. Selvagem porque vinculada à multiplicidade inexaurível do ser, às suas florescências, tão vastas quanto cheias de movimento. O ser de Spinoza é selvagem e sombreado e múltiplo em suas expressões” (p. 271 e 282).
A revolução-anomalia
O pensamento filosófico moderno, diz Negri, procura conceitos que sejam a réplica ideal (imaginária) das relações de produção capitalista. A filosofia de Espinosa, ao contrário, afirma as forças produtivas e critica a versão metafísica das relações de produção.
No início do livro de Negri há dois Espinosa: um, que representa a culminância do pensamento humanista da Renascença, de cunho neoplatônico (o emanatismo de Leão Hebreu e o panteísmo de Giordano Bruno), cultivado pelo círculo de amigos cristãos de Espinosa e que Negri designa como pensamento utópico – busca da salvação pelo ascetismo moral e pela fusão mística com a divindade. O outro, que realiza a revolução filosófica, inaugura o materialismo moderno – a concepção do homem como apetite e desejo no interior da Natureza, como potência de existir e agir que sofre as pressões de causas externas, mas também se constitui como causa interna de apropriação livre da Natureza e de instauração da sociabilidade e da política. Acompanhando as tensões, contradições e aporias do percurso da obra espinosana, Negri nos apresenta, no ponto de chegada, um só Espinosa, aquele cujo pensamento vimos efetuar-se como trabalho da obra.
Negri fala em duas “fundações” da obra. Na “primeira fundação” estão presentes o misticismo religioso, a essencialidade produtiva divina da teologia da Contra-Reforma, a ontologia emanatista neoplatônica e o dualismo metafísico cartesiano de separação entre corpo e alma. A “segunda fundação”, posterior à redação do Tratado Teológico Político, enfrenta a aporia deixada pela primeira, isto é, o essencialismo posto pelos atributos de Deus como causadores da realidade e cujo estatuto é um problema não só para Espinosa, mas também para seus intérpretes (que oscilam entre uma concepção subjetivista dos atributos e uma concepção objetivista). O TTP, criticando o par superstição-medo, que dirige a práxis histórica, e substituindo-o pelo par liberdade–segurança, introduz a potência humana e, por meio dela, permite a Espinosa realizar a “segunda fundação” da obra.
Desaparece, agora, a emanação do mundo a partir da essência divina e seus atributos em proveito da potência infinita, presente imediatamente na constituição ontológica do mundo das coisas em sua materialidade. A relação se estabelece diretamente entre a potência infinita do ser e a potência livre dos seres finitos. O homem, como indivíduo singular, se constitui como conatus (potência de auto-preservação), apetite corpóreo e desejo consciente (potência de apropriação da Natureza), ou, em outras palavras, como espontaneidade de uma força produtiva e como subjetividade. A espontaneidade da força produtiva apropriadora da Natureza constitui um novo indivíduo, indivíduo coletivo e uma subjetividade coletiva inédita: a multitudo, a massa como força social e política que constitui o político sem passar pela ficção burguesa do contrato social.
Ética e política são ontologias porque são históricas: concernem ao movimento de constituição do homem como potência de liberação que age no interior de limites (a potência da Natureza e a potência dos outros homens limitam a nossa) e de constituição da multitudo como sociabilidade determinada que funda a política como liberação no interior de limites determinados (a potência da sociedade). Os limites da ação são determinados (natureza e história), mas são fixos, e a liberdade humana é a tendência para afastar e redefinir tais limites. A liberdade é ação.
A ontologia de Espinosa não é panteísmo emanatista; a ética espinosana não é utopia da salvação por imersão no absoluto; a política espinosana não é contratualista nem transforma o direito em obrigação e obediência; e sobretudo, o pensamento espinosano não é dialético: não precisa das piruetas do idealismo alemão, seja sob as formas das antinomias da dialética transcendental kantiana, seja sob a forma do “calvário do negativo” das mediações hegelianas. Filosofia da afirmação e não da mediação.
Tudo quanto é hegemônico no pensamento do século 17 vê-se demolido pelo materialismo prático (ético, político, ontológico) de Espinosa. À idolatria do mercado como organização sócio-política das relações de produção, Espinosa contrapõe a pluralidade infinita das forças produtivas singulares indomináveis porque são forças de apropriação ou desejo; à burguesia holandesa, submissa à crise e às imagens da transcendência e da hierarquia, Espinosa contrapõe a potência infinita do ser que se irradia em expressões singulares necessárias e livres e cujo poder se realiza plenamente na democracia; à teoria hobbesiana do contrato e da autoridade política formada pela passagem do fato ao direito como obrigação, Espinosa contrapõe a constituição do político pela multitudo cujo poder é direito e cujo direito é poder, ambos como desejo de liberdade (governar e não ser governado); ao dualismo cartesiano do corpo e da alma, Espinosa contrapõe o movimento contínuo de passagem da singularidade corporal à subjetividade psíquica, ambas aspectos da mesma realidade individual complexa às experimentações científico-tecnológicas de domínio da Natureza, Espinosa contrapõe o movimento ético-político de apropriação da Natureza para realização da segurança, da paz e da liberdade. Espinosa escava e demole os pilares do pensamento moderno: transcendência, finalismo, hierarquia e dominação, em suma, as mediações.
Mesmo que o leitor de Espinosa possa discordar de vários aspectos da interpretação oferecida por Negri, não discordará – se for leitor atento de Espinosa – do ponto central da anomalia selvagem: a demolição espinosana do imaginário teológico-metafísico que servia de alicerce para a ética e a política, desde a antiguidade até nossos dias, e aquilo que o faz, do fundo do passado, nosso contemporâneo. Um filósofo que jamais abandonou o combate a todas as formas de alienação e servidão visíveis e invisíveis pede leitores combativos e corajosos como Negri. Espinosa, diz Negri, não precisa de utopias e as combate duramente porque funda ontologicamente a liberdade e desvenda as formas práticas de sua realização. Filósofo das forças produtivas, destrói as ideologias que enfatizam imaginariamente as relações de produção.
NOTA
1 – Para o leitor não-familiarizado com o pensamento de Espinosa: o ser infinitamente infinito (substância, Deus, Natureza Naturante) existe em si e por si e é causa de si ou potência infinita de existência e ação, manifestando-se espontaneamente em seres singulares finitos são seus modos. Os seres humanos são modos finitos do infinito e são imanentes a ele por suas potências de existir e agir. Na tradição interpretativa, afirma-se a derivação dos modos finitos a partir da essência finita do ser, através de seus atributos essenciais infinitos. Negri propõe abandonar essa tradição interpretativa fazendo que a potência dos modos finitos concretos (apetite e desejo) funde a potência infinitamente infinita do ser ou da Natureza.
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